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Filhas e Filhos

de Ajahn Jayasaro

em 19 Abr 2021

  Há muitos anos, antes de ter sido ordenado monge, eu acreditava que a sabedoria provinha da experiência. Então troquei o meu país de origem, Inglaterra, pela Índia, vagueando e acumulando experiência de vida na Europa e na Ásia. Quanto mais difícil era, mais eu gostava, porque sentia que as dificuldades me ajudavam a conhecer-me melhor, e isso era benéfico para a minha vida. Mas a viagem por terra até à Índia deixou-me um bocadinho decepcionado. Não foi tão desafiante como eu esperava, daí que no regresso tenha resolvido fazer a viagem do Paquistão até Inglaterra sem dinheiro nenhum. Perguntava-me se seria possível fazer todo o caminho de volta à boleia, e para além disso queria saber como seria não ter rigorosamente nada.


Sem dúvida de que foi uma aventura, houve situações que nunca esquecerei. Gostaria de vos falar sobre uma delas. Quando cheguei ao Teerão – a capital do Irão –, estava exausto. Estava magro como um pau de virar tripas, as minhas roupas estavam todas sujas e amarfanhadas, e com certeza que estava com um aspecto medonho. Fiquei em choque quando me vi ao espelho numa casa de banho pública. No que toca à minha mente, ela era cada vez mais como a mente de um fantasma esfomeado, sempre preocupado com comida: “Será que vou arranjar alguma coisa para comer hoje?” O facto de o meu estômago estar vazio ou cheio dependia da bondade de seres humanos como eu. Tive de confiar no meu pāramī porque não havia mais nada em que confiar.

Foi então que conheci um iraniano que se condoeu de mim ao mesmo tempo que viu uma oportunidade para praticar o seu inglês, tendo-me oferecido um chá e algum dinheiro. À noite, dormi na rua, escondido num becozinho silencioso. Tinha medo de que a Polícia me batesse se me encontrasse. De manhã, fui até uma loja de sopas em que me lembrava que o pão era grátis. Ao caminhar pela rua, esforçando-me por não olhar pelo canto do olho para os tentadores restaurantes e não cheirar o aroma que pairava no ar, reparei numa mulher que vinha na minha direcção. Ela pareceu aturdida quando me viu. Então estancou, olhou fixamente por um momento e aproximou-se de mim com o sobrolho franzido. Através de sinais, disse-me que a seguisse, e eu, como pessoa que anda atrás da experiência, segui. Depois de caminhar uns dez minutos, chegámos a um prédio residencial e subimos de elevador até ao quarto andar. Eu assumi que estávamos a ir para a casa dela, embora ela continuasse sem ter dito uma única palavra. E nada de sorrisos amigáveis, apenas um sobrolho franzido.

Quando a porta se abriu, vi que era efectivamente a casa dela. Ela conduziu-me até à cozinha e apontou para uma cadeira, fazendo-me sinal para me sentar. Depois trouxe-me diversas variedades de comida. Eu senti-me como se estivesse no céu. A situação fez-me dar conta de que a comida mais deliciosa do mundo é a comida que se come quando se tem mesmo fome e o estômago está a resmonear. A mulher chamou o filho e disse-lhe algo que eu não percebi, mas reparei que ele era mais ou menos da mesma idade que eu. O filho voltou ao fim de um bocado, com um par de calças e uma camisa. Quando viu que eu tinha acabado de comer, a mulher apontou para a casa de banho e fez-me sinal para tomar banho e vestir a roupa nova. (Suspeito que o plano dela fosse queimar a minha roupa velha.) Ela não sorriu nem disse nada, e fez-se entender por meio de sinais. Enquanto tomava banho, pensei que talvez esta senhora visse em mim o seu próprio filho e pensasse: “E se o meu filho fizesse uma viagem a um país estrangeiro e passasse por dificuldades desta maneira?” “E se ele estivesse nesta lastimável situação?” “Como seria?” Creio que ela me terá ajudado com um amor de mãe (§). Decidi então nomeá-la a minha “Mãe Persa Honorária” e ri-me sozinho na casa de banho.

Depois de pronto, a mulher levou-me de volta ao lugar em que me encontrara e deixou-me lá. Ela fundiu-se novamente na corrente de pessoas que iam para o trabalho, e eu fiquei ali a vê-la desaparecer na multidão, sabendo lá no fundo que nunca a haveria de esquecer em toda a minha vida. Eu estava muito comovido e tinha lágrimas nos olhos. Ela deu-me tanto, apesar de não nos conhecermos de lado nenhum. Eu estava de uma magreza cadavérica, a minha roupa estava suja e malcheirosa, e tinha o cabelo comprido e desgrenhado. Mas ela não se importou nem um bocadinho, inclusive levou-me para sua casa e cuidou de mim como se eu fosse o seu próprio filho, sem esperar nada em troca – nem sequer uma palavra de agradecimento.
  (... continua) 


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