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Filhas e Filhos
de Ajahn Jayasaro
em 19 Abr 2021
(...anterior) Enquanto sociedade zelosa, claro que devemos fazer tudo o que pudermos para proteger as crianças dos abusos, deixar claro o quão inaceitável o consideramos e lidar com pais culposos segundo a jurisprudência. Mas ao mesmo tempo podemos proteger as nossas mentes da raiva e do desespero recordando-nos de que estamos a ver um pequeno segmento de uma saga complexa, amplamente escondida dos nossos olhos. Levando em consideração esta verdade, talvez as vítimas de abusos sejam capazes de encontrar o seu caminho para o perdão para todos os envolvidos.
Por sorte, existem muito poucos pais que sejam completamente maus para os seus filhos. Como dizem os textos, para eles a maioria é como Deuses à imagem de Brahma, movidos por amor, compaixão e alegria rejubilante sem vacilar. Em vários discursos, o Buda ensina-nos como retribuir o imenso benefício dos nossos pais. Um dos mais conhecidos é o ensinamento chamado As Seis Direcções, que o Buda dispensou a um jovem chamado Sigalaka. Parte desse ensinamento diz:
De cinco modos, chefes de família, deve um filho atender aos seus pais como o Este (dizendo para si mesmo):
I. Tendo sido sustentado por eles, sustentá-los-ei por meu turno.
II. Ajudá-los-ei no seu trabalho.
III. Manterei a honra e as tradições da minha família.
IV. Far-me-ei merecedor da minha herança.
V. Farei oferendas, dedicando-lhes o mérito depois de eles morrerem.
(DIII.189-192)
Os ensinamentos neste discurso reflectem a estrutura ideal de uma sociedade budista. A ênfase está nas responsabilidades das pessoas umas com as outras, nas obrigações em vez de nos direitos. Hoje em dia, é animador pensar na quantidade de gente na Tailândia que tenta praticar segundo os princípios citados acima. Mas há outro discurso de que eu gostava de falar aqui, um que é bastante menos conhecido e menos praticado. Nesse discurso, o Buda diz que mesmo que um filho colocasse a mãe (§) num ombro e o pai no outro, os carregasse durante centenas de anos, lhes desse comida bem confeccionada de que eles gostassem, lhes desse banho e os massajasse, os deixasse evacuar e urinar nos seus ombros, ou lhes desse avultadas somas de dinheiro, lhes oferecesse uma posição elevada e de poder – mesmo que fizesse tudo isto pelos pais, o filho continuaria a ser incapaz de lhes retribuir apropriadamente por tudo o que eles fizeram por ele.
Contudo, se os pais têm pouca ou nenhuma fé no Dhamma e se um filho conseguir ajudar a despertar a fé dos pais, ou se os pais não praticam os cinco preceitos ou os praticam inconsistentemente e um filho poder ajudar a melhorar a conduta moral dos pais, os se um filho conseguir levar pais forretas a deleitarem-se com dar e ajudar os outros, ou ajudar os pais a desenvolver a sabedoria para ultrapassar impurezas mentais e pôr fim ao sofrimento, o filho que for bem-sucedido nestas tarefas, pode dizer-se que retribuiu verdadeiramente a dívida de gratidão que tinha para com os seus pais. São muitos os pontos a considerar neste discurso. Eu acredito que quando o Buda ensinou isto estava a brincar. Acham que não? Então imaginem-se a alimentar os vossos pais com eles sentados aos ombros. Nem precisam de pensar em cem anos, provavelmente não conseguiriam aguentar o peso deles nem cinco minutos. Algumas mães (aqui estou a pensar na minha) começavam por nem querer subir lá para cima porque podiam cair e partir um braço ou uma perna. Eu acho que o Buda usou esta enorme hipérbole porque queria que fizéssemos a seguinte reflexão: tchiii!… mesmo que eu fizesse coisas inacreditáveis como esta, não seria suficiente, quanto mais o que eu faço por eles agora. Ele queria que víssemos que é uma dívida enorme, e que por muito que nos esforcemos a cuidar dos nossos pais das formas normais, é apenas como se estivéssemos a pagar os juros da dívida. Quando estamos em dívida, o dono da dívida não está interessado em quanto pagámos no passado mas sim em quanto falta pagar no futuro. Do mesmo modo, ao considerar a nossa dívida para com os nossos pais, em vez de recordar todas as coisas que já fizemos, devemos pensar no que falta, no que ainda não fizemos.
(... continua)
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