Fundação Maitreya
 
Filhas e Filhos

de Ajahn Jayasaro

em 19 Abr 2021

  Há muitos anos, antes de ter sido ordenado monge, eu acreditava que a sabedoria provinha da experiência. Então troquei o meu país de origem, Inglaterra, pela Índia, vagueando e acumulando experiência de vida na Europa e na Ásia. Quanto mais difícil era, mais eu gostava, porque sentia que as dificuldades me ajudavam a conhecer-me melhor, e isso era benéfico para a minha vida. Mas a viagem por terra até à Índia deixou-me um bocadinho decepcionado. Não foi tão desafiante como eu esperava, daí que no regresso tenha resolvido fazer a viagem do Paquistão até Inglaterra sem dinheiro nenhum. Perguntava-me se seria possível fazer todo o caminho de volta à boleia, e para além disso queria saber como seria não ter rigorosamente nada.


Sem dúvida de que foi uma aventura, houve situações que nunca esquecerei. Gostaria de vos falar sobre uma delas. Quando cheguei ao Teerão – a capital do Irão –, estava exausto. Estava magro como um pau de virar tripas, as minhas roupas estavam todas sujas e amarfanhadas, e com certeza que estava com um aspecto medonho. Fiquei em choque quando me vi ao espelho numa casa de banho pública. No que toca à minha mente, ela era cada vez mais como a mente de um fantasma esfomeado, sempre preocupado com comida: “Será que vou arranjar alguma coisa para comer hoje?” O facto de o meu estômago estar vazio ou cheio dependia da bondade de seres humanos como eu. Tive de confiar no meu pāramī porque não havia mais nada em que confiar.

Foi então que conheci um iraniano que se condoeu de mim ao mesmo tempo que viu uma oportunidade para praticar o seu inglês, tendo-me oferecido um chá e algum dinheiro. À noite, dormi na rua, escondido num becozinho silencioso. Tinha medo de que a Polícia me batesse se me encontrasse. De manhã, fui até uma loja de sopas em que me lembrava que o pão era grátis. Ao caminhar pela rua, esforçando-me por não olhar pelo canto do olho para os tentadores restaurantes e não cheirar o aroma que pairava no ar, reparei numa mulher que vinha na minha direcção. Ela pareceu aturdida quando me viu. Então estancou, olhou fixamente por um momento e aproximou-se de mim com o sobrolho franzido. Através de sinais, disse-me que a seguisse, e eu, como pessoa que anda atrás da experiência, segui. Depois de caminhar uns dez minutos, chegámos a um prédio residencial e subimos de elevador até ao quarto andar. Eu assumi que estávamos a ir para a casa dela, embora ela continuasse sem ter dito uma única palavra. E nada de sorrisos amigáveis, apenas um sobrolho franzido.

Quando a porta se abriu, vi que era efectivamente a casa dela. Ela conduziu-me até à cozinha e apontou para uma cadeira, fazendo-me sinal para me sentar. Depois trouxe-me diversas variedades de comida. Eu senti-me como se estivesse no céu. A situação fez-me dar conta de que a comida mais deliciosa do mundo é a comida que se come quando se tem mesmo fome e o estômago está a resmonear. A mulher chamou o filho e disse-lhe algo que eu não percebi, mas reparei que ele era mais ou menos da mesma idade que eu. O filho voltou ao fim de um bocado, com um par de calças e uma camisa. Quando viu que eu tinha acabado de comer, a mulher apontou para a casa de banho e fez-me sinal para tomar banho e vestir a roupa nova. (Suspeito que o plano dela fosse queimar a minha roupa velha.) Ela não sorriu nem disse nada, e fez-se entender por meio de sinais. Enquanto tomava banho, pensei que talvez esta senhora visse em mim o seu próprio filho e pensasse: “E se o meu filho fizesse uma viagem a um país estrangeiro e passasse por dificuldades desta maneira?” “E se ele estivesse nesta lastimável situação?” “Como seria?” Creio que ela me terá ajudado com um amor de mãe. Decidi então nomeá-la a minha “Mãe Persa Honorária” e ri-me sozinho na casa de banho.

Depois de pronto, a mulher levou-me de volta ao lugar em que me encontrara e deixou-me lá. Ela fundiu-se novamente na corrente de pessoas que iam para o trabalho, e eu fiquei ali a vê-la desaparecer na multidão, sabendo lá no fundo que nunca a haveria de esquecer em toda a minha vida. Eu estava muito comovido e tinha lágrimas nos olhos. Ela deu-me tanto, apesar de não nos conhecermos de lado nenhum. Eu estava de uma magreza cadavérica, a minha roupa estava suja e malcheirosa, e tinha o cabelo comprido e desgrenhado. Mas ela não se importou nem um bocadinho, inclusive levou-me para sua casa e cuidou de mim como se eu fosse o seu próprio filho, sem esperar nada em troca – nem sequer uma palavra de agradecimento. Entretanto passaram-se vinte anos, e eu gostaria de exaltar publicamente a virtude desta bodhisattva carrancuda, para que toda a gente saiba que mesmo numa cidade grande, ainda existem pessoas boas e que talvez existam mais pessoas boas do que imaginamos.

Esta mulher não foi a única pessoa com bom coração que eu conheci. Fui o receptor de bondade e ajuda por parte de muita gente em muitos países enquanto viajava e acumulava experiência de vida, mesmo sem ter pedido nada a ninguém. Isso fez-me determinar na minha mente que de futuro se me encontrasse em posição de ajudar os outros da mesma forma, ajudaria. Eu queria ajudar a sustentar o espírito da bondade humana no mundo. Por vezes a sociedade pode parecer um lugar duro e sem piedade, mas o que pensei foi que cada um de nós pode tentar ser pelo menos um pequeno oásis no deserto. Não cheguei a regressar a Inglaterra. Perdi o passaporte perto da fronteira turca e voltei para o Teerão, onde fiz amigos e arranjei um trabalho a dar aulas de inglês. Ao fim de uns meses, com algum dinheiro no bolso, regressei à Índia. No meu décimo nono aniversário, encontrava-me a viver junto a um lago com um monge hindu. Ele era um professor inspirador cujas práticas se assemelhavam ao budismo e ensinou-me muitas coisas. Enquanto estive com ele, tive imenso tempo para contemplar a minha vida. À tarde, gostava de subir uma montanha que ficava ali perto, de me sentar debaixo de uma árvore antiga e desfrutar da brisa. Olhar para o lago lá em baixo e para o deserto que se estendia até ao horizonte permitia-me pensar com clareza.

Houve um dia em que a minha mente se encheu de perguntas. Porque é que seria que, embora ficasse impressionado sempre que me lembrava da bondade das pessoas que me haviam ajudado durante a minha viagem – aquelas que me deram comida ou abrigo por uma noite ou duas –, eu nunca me sentira da mesma forma em relação à bondade dos meus pais. Eles tomaram conta de mim durante dezoito anos, deram-me comida todos os dias – três ou quatro vezes por dia – e ainda por cima preocupavam-se com o facto de a comida poder não ser suficientemente deliciosa para mim. Eles tinham-me dado tanto roupa como abrigo. Havia-me levado ao médico quando estava doente, e quando eu adoecia, era como se eles sofressem mais do que eu. Porque é que isso nunca me impressionara? De repente, senti que fora vergonhosamente injusto. Apercebi-me de como não lhes dava o devido valor. Nesse momento, foi como se as comportas se tivessem aberto. Muitos exemplos do boon khoon dos meus pais, da sua generosidade e bondade, vieram-me então à mente de forma absolutamente avassaladora e impressionante. Este foi o início da minha gratidão para com os meus pais.

Continuei a imaginar quão difícil deve ter sido para a minha mãe quando estava grávida. Ao princípio, há-de ter tido enjoos matinais e mais para a frente deve ter tido dificuldade em andar. Todos os tipos de movimento hão-de ter sido incómodos e dolorosos. Mas ela aceitou o sofrimento porque acreditava que havia algo nele que valia a pena, e esse algo era eu. Quando eu era pequeno, tive de depender dos meus pais para tudo, mas porque é que me sentia indiferente – como se fosse obrigação deles darem-me e um direito meu receber? Ao fim de um tempo, apercebi-me de que ganhara a oportunidade de praticar o budismo para desenvolver um verdadeiro refúgio interior, uma vez que os meus pais me haviam providenciado um refúgio exterior estável e seguro quando eu era pequeno. Eles tinham-me dado uma fundação sólida para o meu coração enfrentar a batalha contra as impurezas.

Aos 20 anos, fui para a Tailândia para ser ordenado monge budista. Os meus pais não levantaram objecções porque eles queriam que o filho vivesse a sua vida do modo que desejava e que fosse feliz. Os meus pais preferiram isto às suas próprias esperanças para mim. No ano passado, a minha mãe confessou-me que o dia em que eu saí de casa fora o dia mais triste da vida dela. Fiquei muito comovido com isso. O que me impressionou mais foi o facto de ela ter sido muito paciente e ter escondido este sofrimento de mim durante vinte anos, porque não queria que eu me sentisse mal por isso. Depois de me ter tornado monge, por vezes não conseguia evitar recriminar-me. Enquanto vivia com os meus pais, tive todos os dias a oportunidade de fazer coisas por eles para retribuir o seu amor e raramente o fiz. Agora tinha o desejo de expressar o meu sentido de gratidão por eles de uma forma tangível mas não podia: eu era monge e vivia a milhares de quilómetros de distância deles. Que pena. Ainda assim eu podia fazer o que os monges fazem há mais de dois mil anos e enviar-lhes pensamentos de amor benevolente todos os dias.

Na Tailândia falamos com regularidade do boon khoon dos pais. Não há uma equivalência exacta para este conceito de boon khoon na língua inglesa [nem na portuguesa], mas podemos explicá-lo como a convicção de que sempre que recebemos bondade ou assistência de alguém – sobretudo quando é dado gratuitamente –, incorremos em certas obrigações. Uma boa pessoa é aquela que honra essas obrigações, e a mais profunda dessas obrigações é com os nossos pais. O Buda ensinou-nos a desenvolver tanto um apreço profundo pela dívida de gratidão que temos com os nossos pais como a intenção de a pagar da melhor forma que conseguirmos.

Boon khoon não é um valor com o qual eu tenha crescido. Nas culturas ocidentais existe, naturalmente, amor e apego entre pais e filhos, mas de um modo geral o sentido de obrigação mútua é mais fraco. Dá-se mais peso a valores como independência e liberdade individual. Talvez o vínculo especial profundo entre pais e filhos seja sentido por muita gente, mas ele não é expresso como uma referência moral que sustenta a sociedade, como acontece nas culturas budistas como a da Tailândia. A importância que atribuímos ao boon khoon dos pais talvez tenha origem nos ensinamentos do Buda sobre a Visão Correcta mundana, a base para entender o que é o quê nas nossas vidas. Nos textos em pāli, o Buda diz que devemos acreditar que o nosso pai é real e que a nossa mãe é real. Ficaram confusos ao ler isto? Porque é que o Buda achou que tinha de nos dizer isto? Não é uma coisa óbvia? Quem é que não sabe que nascemos neste mundo porque temos pais que existem de facto?

O que há a compreender aqui é que estas palavras são idiomáticas. O que o Buda está a dizer é que temos de acreditar que existe um significado especial na relação entre pais e filhos, um significado que devemos reconhecer e honrar. A relação entre pais e filhos é misteriosa e profunda. O Buda ensina-nos que não há kamma mais pesado do que matar a própria mãe ou o próprio pai. Em pāli, chama-se-lhe anantariya kamma – um kamma tão abominável, que os seus terríveis resultados não podem ser evitados, por muito sincero que seja o arrependimento do perpetrador. Embora Angulimala pudesse ser um arahant mesmo tendo matado 999 pessoas, teria sido impossível se ele houvesse matado apenas uma pessoa, caso essa pessoa fosse ou o seu pai ou a sua mãe.

O Buda não ensinou a profundidade desta relação simplesmente como um meio inteligente de promover os valores familiares. Trata-se de uma verdade intemporal que ele descobriu e depois revelou para benefício da raça humana. É um princípio budista importante, o de que a relação entre os nossos pais e nós é intensa e profunda, e provavelmente assim foi por muitas vidas. Posto isto, devemos aceitar, respeitar e cuidar desta relação.

Podemos dizer, em suma, que nesta vida estamos a retomar “assuntos por tratar” com os nossos pais. Em alguns casos, este estado não resolvido das coisas pode manifestar-se de uma forma má, como quando um bebé é abandonado pelos pais ou uma criança é vítima de abusos físicos ou psicológicos por parte do pai ou da mãe. Existem casos destes e eles parecem ser mais todos os dias. Só que as coisas terríveis que os pais podem fazer aos filhos não invalidam esta relação especial. A vida presente é apenas uma cena de um longo drama, e nós não sabemos o que aconteceu no passado. Enquanto sociedade zelosa, claro que devemos fazer tudo o que pudermos para proteger as crianças dos abusos, deixar claro o quão inaceitável o consideramos e lidar com pais culposos segundo a jurisprudência. Mas ao mesmo tempo podemos proteger as nossas mentes da raiva e do desespero recordando-nos de que estamos a ver um pequeno segmento de uma saga complexa, amplamente escondida dos nossos olhos. Levando em consideração esta verdade, talvez as vítimas de abusos sejam capazes de encontrar o seu caminho para o perdão para todos os envolvidos.

Por sorte, existem muito poucos pais que sejam completamente maus para os seus filhos. Como dizem os textos, para eles a maioria é como Deuses à imagem de Brahma, movidos por amor, compaixão e alegria rejubilante sem vacilar. Em vários discursos, o Buda ensina-nos como retribuir o imenso benefício dos nossos pais. Um dos mais conhecidos é o ensinamento chamado As Seis Direcções, que o Buda dispensou a um jovem chamado Sigalaka. Parte desse ensinamento diz:

De cinco modos, chefes de família, deve um filho atender aos seus pais como o Este (dizendo para si mesmo):
I. Tendo sido sustentado por eles, sustentá-los-ei por meu turno.
II. Ajudá-los-ei no seu trabalho.
III. Manterei a honra e as tradições da minha família.
IV. Far-me-ei merecedor da minha herança.
V. Farei oferendas, dedicando-lhes o mérito depois de eles morrerem.
(DIII.189-192)

Os ensinamentos neste discurso reflectem a estrutura ideal de uma sociedade budista. A ênfase está nas responsabilidades das pessoas umas com as outras, nas obrigações em vez de nos direitos. Hoje em dia, é animador pensar na quantidade de gente na Tailândia que tenta praticar segundo os princípios citados acima. Mas há outro discurso de que eu gostava de falar aqui, um que é bastante menos conhecido e menos praticado. Nesse discurso, o Buda diz que mesmo que um filho colocasse a mãe num ombro e o pai no outro, os carregasse durante centenas de anos, lhes desse comida bem confeccionada de que eles gostassem, lhes desse banho e os massajasse, os deixasse evacuar e urinar nos seus ombros, ou lhes desse avultadas somas de dinheiro, lhes oferecesse uma posição elevada e de poder – mesmo que fizesse tudo isto pelos pais, o filho continuaria a ser incapaz de lhes retribuir apropriadamente por tudo o que eles fizeram por ele.

Contudo, se os pais têm pouca ou nenhuma fé no Dhamma e se um filho conseguir ajudar a despertar a fé dos pais, ou se os pais não praticam os cinco preceitos ou os praticam inconsistentemente e um filho poder ajudar a melhorar a conduta moral dos pais, os se um filho conseguir levar pais forretas a deleitarem-se com dar e ajudar os outros, ou ajudar os pais a desenvolver a sabedoria para ultrapassar impurezas mentais e pôr fim ao sofrimento, o filho que for bem-sucedido nestas tarefas, pode dizer-se que retribuiu verdadeiramente a dívida de gratidão que tinha para com os seus pais. São muitos os pontos a considerar neste discurso. Eu acredito que quando o Buda ensinou isto estava a brincar. Acham que não? Então imaginem-se a alimentar os vossos pais com eles sentados aos ombros. Nem precisam de pensar em cem anos, provavelmente não conseguiriam aguentar o peso deles nem cinco minutos. Algumas mães (aqui estou a pensar na minha) começavam por nem querer subir lá para cima porque podiam cair e partir um braço ou uma perna. Eu acho que o Buda usou esta enorme hipérbole porque queria que fizéssemos a seguinte reflexão: tchiii!… mesmo que eu fizesse coisas inacreditáveis como esta, não seria suficiente, quanto mais o que eu faço por eles agora. Ele queria que víssemos que é uma dívida enorme, e que por muito que nos esforcemos a cuidar dos nossos pais das formas normais, é apenas como se estivéssemos a pagar os juros da dívida. Quando estamos em dívida, o dono da dívida não está interessado em quanto pagámos no passado mas sim em quanto falta pagar no futuro. Do mesmo modo, ao considerar a nossa dívida para com os nossos pais, em vez de recordar todas as coisas que já fizemos, devemos pensar no que falta, no que ainda não fizemos. A dívida que temos com os nossos pais não é uma dívida normal, é uma obrigação sagrada.

O Buda ensina-nos que para além de servir os nossos pais como prescrito em As Seis Direcções, um budista deve encorajar os seus pais para tudo o que é bom. O filho deve procurar ser um kalyanamitta ou “bom amigo” para os seus pais. Aqui talvez vejamos mais claramente que a ideia de uma sociedade budista é uma em que as pessoas tentam ser boas amigas umas das outras. Os pais devem tentar ser bons amigos dos filhos, e os filhos devem tentar ser bons amigos dos pais. Um irmão mais velho deve tentar ser um bom amigo para um irmão mais novo, e um irmão mais novo deve tentar ser um bom amigo para um irmão mais velho. Um marido deve tentar ser um bom amigo para a mulher, e a mulher deve tentar ser uma boa amiga para o marido. Devemos ajudar-nos uns aos outros na tarefa de reduzir as emoções negativas nos nossos corações e trabalharmos juntos para criar uma vida e uma sociedade baseada em amor bondoso, compaixão e sabedoria.

No discurso que mencionei acima, o Buda destacou quatro virtudes. Eu gostaria de as repetir e de desenvolver o seu significado.
Saddhā (fé) é a fé de que o Buda é um ser perfeitamente iluminado, de que os seus ensinamentos são verdadeiros e de que os ensinamentos do Buda resultarão em liberdade para aqueles que os praticam a sério. É acreditar que há pessoas que praticaram bem os ensinamentos do Buda e se tornaram livres através deles. É acreditar que de todos os seres no universo, este grupo de nobres seres livres é o mais merecedor de respeito. É acreditar que enquanto seres humanos, nós controlamos o nosso próprio destino: independentemente de as coisas virem a ser boas ou más, quer experienciemos felicidade ou sofrimento, depende de nós. As nossas vidas não dependem de nenhum espírito, fantasma, anjo, deus ou poder divino, mas sim das nossas próprias acções do corpo, do discurso ou da mente – tanto no passado como, e mais importante, no presente. Na sua essência, saddhā quer dizer fé no nosso potencial para a iluminação, e a convicção de que a coisa mais importante que um ser humano pode obter da sua vida é liberdade do sofrimento e das suas causas.
Sīla (virtude ou preceitos) é a beleza e nobreza de conduta. Refere-se à capacidade de nos refrearmos de dizer ou fazer alguma coisa que nos prejudique a nós mesmos ou aos outros. Sīla é libertação do mau kamma criado através do corpo e do discurso, e encontra-se estável quando protegida por um sentido inteligente de vergonha em relação a acções prejudiciais (hiri) e um receio inteligente das consequências kámmicas de tais acções (ottappa). Sīla fornece a referência moral necessária àqueles que estão determinados em crescer no Dhamma.
Chaga (generosidade, renúncia) refere-se ao desapego das coisas materiais, ao deleite na generosidade, caridade e ajuda aos outros. As pessoas com chaga são amáveis e atenciosas, não são mesquinhas nem se engrandecem a si mesmas.
Pañña (sabedoria) é o tipo de saber que extingue o sofrimento e as impurezas que o provocam. Os seres humanos estão sempre vulneráveis ao sofrimento, embora ninguém queira sofrer o mínimo que seja. Sofremos porque não entendemos como é que o sofrimento aparece e como é que cessa. Porque é que não entendemos? Porque não nos compreendemos a nós próprios e não estamos a tentar compreender tanto como podíamos. Enquanto não nos compreendermos a nós próprios, seremos sempre uma vítima das nossas emoções. É como estar num quarto às escuras com uma cobra. Seria possível andar num quarto assim sem ser mordido pela cobra? Já seria suficientemente difícil evitar ir contra os móveis.
Pañña, na fase inicial, trabalha ao nível da percepção. É uma função das memórias que acumulámos de ouvir, escutar e ler o Dhamma. Nós condicionamos as nossas emoções – boas e más – com percepção e ideação. Aqueles que escutam e se lembram do Dhamma podem reflectir sobre ele até compreenderem, e então podem cultivar o caminho da ponderação inteligente. Tendo treinado desta forma, quando a mente cai num estado nocivo, ela não fica completamente dominada, não cai na rotina, ela rapidamente se endireita a si mesma. Quando uma pessoa que nunca estudou o Dhamma é maltratada, por exemplo, ela em princípio vai ficar zangada e deprimida. Mas uma pessoa que tenha estudado o Dhamma talvez se lembre da reflexão de que até o Buda foi alvo de abusos e de difamação, e, portanto, porque é que a pessoa haveria de ser excepção? Este pensamento pode levar à aceitação da situação. Ao trazermos à mente reflexões sábias, podemos começar a largar as emoções negativas, e começar o nosso próprio desmame do refúgio do álcool e dos comprimidos. Este nível de pañña discrimina entre bom e mau, entre o benéfico e o prejudicial; dá-nos uma visão pacífica e realista da nossa vida e do mundo. Mas não se trata de um refúgio infalível, sobretudo quando tiverem surgido emoções fortes.

Um nível mais elevado de pañña é a sabedoria que traz conhecimento e compreensão à mente daqueles que têm sīla pura e samādhi (concentração) estável. Neste nível, a sabedoria deixa de ser um pensamento. É muito mais rápida do que pensamentos, como um avião supersónico a voar mais depressa do que o som. Ter sabedoria é ver claramente todas as coisas como elas são, ao ponto de deixarmos de desfrutar de nos apegarmos a elas como sendo eu ou minhas. Esta é a sabedoria que penetra totalmente a verdade de que tudo, incluindo os nossos pensamentos e sentimentos, pertence à natureza e não tem dono. É a sabedoria para ganhar consciência de que a nossa vida não é um forte numa terra árida, mas antes um rio que flui calmamente pelo jardim do mundo. Quando desenvolvemos a sabedoria para ver isto, podemos abrir mão.

O Buda ensinou que encorajar fé, conduta virtuosa, generosidade e sabedoria nos corações dos pais é o mais elevado serviço que se lhes pode prestar, mas ele não descurou os tipos mais básicos de serviço. Ele ensinou que um bom filho deve cuidar dos seus pais. Cuidar dos pais começa com itens materiais, embora não se fique por aí. Oferecer presentes materiais e providenciar conforto é um símbolo de amor, mas não é uma prova de amor e seguramente não deve ser um substituto deste.

A forma como as filhas e os filhos se relacionam com os pais varia de família para família, uma vez que depende de muitos factores; por exemplo, de quantos filhos tem a família, das suas idades, do facto de ainda estarem a viver em casa ou noutro sítio, perto ou longe, etc. Quando os pais envelhecem, um bom filho ou filha ajuda a tomar conta deles. Se não for de facto viável (e não apenas uma desculpa esfarrapada), então deve visitá-los tanto quanto possível, ou pelo menos telefonar ou escrever regularmente, para saber deles e contar aos pais o que se está a passar na sua vida. Saber que os filhos têm saudades e se preocupam com eles é um remédio que dá paz de espírito aos pais, e pode ser um remédio mais eficaz do que aqueles que os médicos lhes prescrevem. Nós damos aos nossos pais o que conseguimos dar. É maravilhoso se podermos pagar as contas médicas quando os nossos pais estão doentes, mas se formos pobres e não tivermos recursos para esse tipo de assistência, então devemos dar aquilo que efectivamente temos – como tempo. Sentarmo-nos com eles, ler-lhes ou tratar deles o melhor que conseguirmos (por exemplo, fazer-lhes uma massagem, dar-lhes banho ou dar-lhes de comer), estas coisas podem ser mais valiosas para os nossos pais do que qualquer oferta material ou dinheiro.

O discurso que citei acima diz-nos que o maior factor a condicionar a felicidade e o sofrimento nas nossas vidas são os pensamentos e as emoções, ou, por outras palavras, a mente propriamente dita. É por esta razão que o Buda diz que é um grande mérito desenvolver características saudáveis e vivenciar estados mentais felizes e alegres. É um tipo de oferta que permite aos nossos pais receber uma dádiva inestimável. É bom e sabe bem oferecer presentes materiais aos nossos pais e dar-lhes coisas que os mimem, levá-los a comer fora ou de férias, por exemplo, mas estes tipos de ofertas são sempre, de alguma forma, limitados. Sobretudo as coisas materiais podem partir-se e desfazer-se e podem inclusive ser a causa de uma tal ansiedade para os mais velhos, que se tornem uma faca de dois gumes. O apoio e zelo dado aos pais só os pode ajudar nesta vida. O Buda disse que para além destas formas louváveis de demonstrar o nosso amor e gratidão pelos nossos pais, devemos não descurar o seu bem-estar espiritual. As boas características que surjam nos corações dos nossos pais não têm inconvenientes. Elas não estão dependentes de condições exteriores, ninguém as pode roubar e fornecem provisões para a próxima vida.

Por esta razão, o Buda chama a estas virtudes um tesouro nobre ou riqueza nobre. Elas são nobres porque consistem em meios de alcançar a verdadeira nobreza da liberdade absoluta em relação ao sofrimento. Devemos providenciar tanta felicidade e conforto aos nossos benfeitores quanto conseguirmos, mas ao mesmo tempo não nos devemos esquecer do que está por trás disso. Mitigar o sofrimento pelo qual os nossos pais passam no seu vaguear pelo reino samsárico continua a ser inferior a reduzir as suas causas primordiais.

Sumariando, os princípios budistas respeitantes a como honrar a dívida de bondade que temos para com os nossos pais dependem das nossas crenças de que:
1. O renascimento contínuo é doloroso (sofrimento), e a libertação do ciclo de renascimento é a verdadeira felicidade.
2. O renascimento é condicionado por impurezas (kilesa).
3. Os humanos podem abrir mão das impurezas, e devem fazê-lo.
4. Deixar ir as impurezas e cultivar boas características é a prática que conduz à verdadeira felicidade.

A questão é: Como é que podemos encorajar os nossos pais a cultivar saddhā, sīla, chaga e pañña como o Buda sugere? Devíamos estar preparados para um certo desapontamento. Talvez não consigamos fazê-lo de todo, ou alcancemos apenas resultados parciais. O nosso “ramo jovem” é relativamente difícil de dobrar, porque é que o “ramo velho” deles haveria de ser fácil? Não fiquem irritados ou frustrados com os vossos pais, e não desistam deles, caso contrário a vossa mente vai ficar perturbada e negativa. É normal as pessoas resistirem à mudança. Portanto, ajam sabiamente mas sem expectativas. Façam-no porque é a coisa certa para um filho ou filha fazer, mas não se permitam sofrer por causa da vossa bondade.

É muito importante dar um bom exemplo. Como diz o velho ditado, “as acções falam mais alto do que as palavras”, e o melhor método de persuasão talvez não seja pelo discurso. Se deixarmos os nossos pais verem os benefícios que retiramos de praticar o Dhamma: se eles virem dentro de nós atributos de generosidade, serenidade, amor benevolente, circunspecção e persistência, então talvez isso lhes dê a fé e a motivação para eles próprios praticarem. Simplificando, se queremos ajudar os nossos pais, também nós, em algum momento, temos de nos ajudar a nós próprios.

Provavelmente o mais fácil é começar por ajudar os nossos pais a cultivar a terceira qualidade: chaga, visto que tem-lhe sido sempre dada muita ênfase na sociedade tailandesa. Não consigo imaginar outro país no mundo em que as pessoas se deleitem mais com dar do que aqui na Tailândia. Um bom filho ou filha convida os pais a juntarem-se-lhe para fazer oferendas e donativos que beneficiarão verdadeiramente o budismo e a sociedade em geral. Devemos utilizar a nossa inteligência na escolha do que oferecer e onde. Ao fazer ofertas ao sangha, por exemplo, devemos estar conscientes de que o Vinaya proíbe um monge de efectuar quaisquer pedidos aos leigos que não sejam seus familiares, excepto no caso de eles já lhe terem apresentado um convite formal (pavarana) para o fazer. Não se deixem intimidar se um monge vos tentar solicitar donativos. Ele está a quebrar uma regra do Vinaya ao fazê-lo e não precisamos de recear que seja mau kamma não lhe dar nada. Pelo contrário, seria um desmérito dar-lhe, porque estaríamos a apoiar a acção desprovida de ética do monge e a minar o sangha. Façam oferendas apropriadas – quanto custaram não é um indicador do mérito – e dêem de tal forma, que consigam sentir alegria antes, durante e depois do acto. Poucas coisas fortalecem tanto o sentido de conexão entre os membros da família como actos colectivos de generosidade.

Para além disso, podemos dar o exemplo aos nossos pais levando uma vida simples, não gastando dinheiro extravagantemente e não sendo demasiado fascinados por coisas materiais. Ao recordar os nossos pais desta forma (definitivamente não a pregar-lhes), talvez eles venham a ponderar a sua própria atitude para com as coisas materiais. Podemos colocar um espelho à sua frente para se puderem ver a si mesmos, e ao fazê-lo prestamos-lhes um serviço, porque ser-se livre da obsessão pelas coisas materiais é outro sentido da palavra chaga. Há pais que vêem um modelo novo e todo porreiro de um carro e ficam excitados como um adolescente, enquanto algumas mães vêem um vestido novo da moda e gritam como uma adolescente. Sob a influência de súbitos desejos febris por bens de consumo, é bastante normal hoje em dia as pessoas de meia-idade agirem de formas que os sábios velhos do passado teriam considerado imaturas. O facto de sabermos quando parar, de conhecermos a medida certa, pode relembrar os nossos pais.

Noutras questões, depende da personalidade dos nossos pais. Se eles de vez em quando vão a um mosteiro e estão interessados no Dhamma, talvez venha a ser relativamente fácil para nós falarmos com eles sobre assuntos importantes uma vez por outra. Mas se eles não estão interessados no Dhamma, se ainda se encontram de boa saúde e nunca se permitiram pensar sobre a inevitabilidade da morte, então talvez fiquem na defensiva. Quem trata a sua kilesa como algo precioso, como algo que acrescenta sabor à vida, sentirá que o Dhamma é invasivo e vai tentar evitá-lo ou rejeitá-lo. Se é este o caso, temos de aceitar e respeitar o direito deles. Não os macem ou oprimam. O Dhamma não é algo que se possa impor a alguém, mesmo que com boa intenção. Se os nossos pais rejeitarem o Dhamma, então por enquanto temos de deixar assim, felizes e dispostos a partilhar o que conseguirmos com eles se e quando eles mudarem de ideias.

Quanto aos pais que estão interessados no Dhamma, podemos levá-los a um mosteiro para eles poderem gerar mérito, ouvir o Dhamma e meditar num sítio tranquilo. Se eles ainda tiverem crenças supersticiosas a respeito de medalhões, magia negra, leitura da sina, médiuns, feiticeiros, etc., então falem com eles sobre isso se possível. Contudo, devemos falar-lhes numa altura e num local apropriados, sem os fazer sentir que achamos que sabemos algo que eles não sabem, ou que nós somos espertos e eles são tolos. Encorajem-nos a praticar regularmente: chi gong é uma boa opção, visto que é uma forma de meditação em si mesmo. Procurem bons livros de Dhamma para eles lerem ou dêem-lhes palestras de Dhamma para ouvir. Falem com eles sobre nascimento, envelhecimento, doença e morte de uma forma natural, permitindo-lhes verem que não se trata de conversas pouco auspiciosas para se ter. A fé e a sabedoria provêm de ter a coragem para confrontar as verdades da vida. Não é que possamos escapar a essas verdades simplesmente ignorando-as.

Porém, também é importante compreender que o Buda não ensinou que ser um bom filho ou filha significa que devemos fazer tudo o que os nossos pais nos dizem ou pedem para fazer. Recusar fazer o que eles querem nem sempre é mau. Porquê? Porque há pais que dizem ou pedem aos filhos para fazer coisas que não são apropriadas. Não está errado recusar aos pais que nos pedem para fazer algo ilegal ou ganhar vícios como beber ou jogar. As nossas obrigações boon khoon não se restringem aos nossos pais. Também somos filhos do Buda, e a sua bondade é ainda maior do que a dos nossos pais. A nossa obrigação para com ele é, consequentemente, a mais elevada. Assim, se os nossos esforços para expressar gratidão pelos nossos pais entrarem em conflito com o nosso compromisso com a bondade e a verdade, então a pessoa sábia, com todo o tacto e respeito, tomará o que está certo como seu guia. Ser bom amigo dos nossos pais não quer dizer agradar-lhes de todas as maneiras. Sem sermos rígidos e insensíveis, temos de ter princípios claros e bons e evitar sermos tendenciosos.

Se tiverem tempo de manhã ou à noite, convidem os vossos pais para cantar ou meditar convosco. A paz que se pode sentir através da meditação proporciona uma felicidade, uma força e um brilho maravilhosos àqueles que lhe chegam. As pessoas que têm mentes tranquilas normalmente vivem mais porque o poder da mente estabilizada consegue suprimir a frustração, a proliferação e as preocupações que enfraquecem o sistema imunitário. Se os nossos pais praticarem meditação até lhe apanharem o jeito, terão um ótimo refúgio interior quando estão doentes. Para ser eficaz, a meditação deve ser desenvolvida em conjunto com esforços para treinar as acções e o discurso. Uma forma simples de ajudar os nossos pais a reduzirem as suas kilesas é não ceder a conversas nocivas com eles. Se um dos nossos pais começar a falar em relação a alguém de forma indelicada, por exemplo, ou a atacar a pessoa pelas costas, podemos simplesmente mantermo-nos calados. Se não respondermos ou entrarmos na conversa, então o nosso pai ou mãe rapidamente perderá o prazer de falar assim e talvez ganhe alguma autoconsciência.

Filhas e filhos que ainda vivam com a família devem tentar manter-se neutros nas discussões que possam despontar entre os pais de vez em quando. Em momentos stressantes, tanto a mãe como o pai tentam muitas vezes puxar os filhos para o seu lado. Uma boa filha ou filho não permitirá que isso aconteça, e terá como objectivo ser um árbitro imparcial. Devemos tentar acalmar pais irritados, e ter o cuidado de não dizer ou fazer nada que piore a situação. Devemos ajudar os pais a resolver as suas diferenças sem que nenhuma das partes tenha de sentir que ganhou ou perdeu. Devemos tentar escutar pacientemente os resmungos e os queixumes dos nossos pais. Escutar os nossos pais, mediar as suas discussões, incentivá-los no sentido do discurso correcto: estas também são formas em que podemos retribuir a nossa dívida de gratidão para com eles.

Se conseguirmos ser um bom amigo para os nossos pais durante um período de tempo longo, eles começarão a confiar e a respeitar-nos cada vez mais. Do mesmo modo, a nossa influência sobre eles e a oportunidade de os encorajar à bondade irá crescer. Só que leva tempo e não nos devemos precipitar. Devemos observar de que maneira também nós beneficiamos dos nossos esforços, pois é precisa muita paciência para lidar correctamente com as pessoas de idade. À medida que envelhecem, as pessoas muitas vezes tornam-se rabugentas, mesquinhas ou esquecidas. Ao convivermos com elas, podemos facilmente sentirmo-nos irritados com isso, daí que tenhamos de estar muito cientes para manter o nosso equilíbrio interior. Assim, ao ajudá-los a eles, também nos estamos a ajudar a nós mesmos.

Na verdade, este mundo é um mundo de benfeitoria. Cultivámos a comida que comemos hoje? De onde é que ela veio? Fizemos a roupa que temos vestida hoje? De onde é que a roupa veio? Uma única peça de roupa que tenha sido feita de algodão implica agricultores de algodão, ceifeiros de algodão, tecelões de algodão, alfaiates, designers, designers das máquinas de tecer e de coser, fabricantes e vendedores. Se hoje usamos um telefone, uma televisão ou entramos num carro, dependemos da esperteza e diligência de quantas pessoas em quantos países? Ter consciência da origem do que temos pode acalmar-nos a mente, e deixar-nos cientes da rede de relações entre pessoas por todo o mundo que é invisível a olho nu. Não só estamos em dívida para com os seres humanos nossos semelhantes como para com as outras criaturas vivas. Se as minhocas não comessem o solo, por exemplo, não poderíamos cultivar colheitas, e sem agricultura, a raça humana não sobreviveria. Temos uma enorme dívida de gratidão com as minhocas. E depois há os búfalos-da-índia, as vacas e outros tipos de gado. Alguma vez nos sentimos gratos por eles?

Inclusive, receio bem que se a raça humana desaparecesse deste mundo, todas as outras criaturas se reuniriam e dariam vivas tão alto, que ficariam roucas. Os seres humanos são extraordinariamente ingratos: nós esgotamos os recursos naturais, destruímos a natureza e estamos perto de tornar o mundo inabitável – tudo para nosso proveito pessoal. Por detrás das nossas acções, está a ilusão de que somos os donos do mundo e não temos responsabilidades para com as criaturas e as plantas que o partilham connosco. Enquanto budistas, cabe-nos ser mais espertos do que isso, e contudo a maioria de nós absorveu inconscientemente esta forma ocidental louca de olhar para a vida. Como consequência, prosseguimos com indiferença. No futuro, nós e os nossos descendentes teremos de sofrer com os resultados deste kamma que criámos, e de quem é a responsabilidade senão nossa? Talvez não seja demasiado tarde para resolver este problema agora, mas temos de mudar a nossa atitude, de modo a darmo-nos conta da profundidade e amplitude da bondade e benfeitoria no mundo. Devemos tentar trabalhar juntos para reduzir o poder do egoísmo humano. E podemos começar pela nossa própria família.

O Buda diz que é extremamente difícil encontrar alguém que nunca tenha sido nosso pai, mãe, irmão ou irmã numa vida anterior. Assim, quando reflectimos na dívida de gratidão que temos para com os nossos pais e outros membros da família, há que ter em mente este ensinamento também. Expandam os vossos esforços para manifestar a vossa gratidão de modo a incluir todos os seres humanos nossos semelhantes. Treinem-se para ser bons amigos para todos em vosso redor e no mundo em que vivemos.

Por fim, que todos vivamos a vida de um bom amigo. Que sejam bons amigos para vocês mesmos fazendo, dizendo e pensando apenas coisas benéficas, para vocês e para os outros. Sejam bons amigos para aqueles que vos ajudaram, sobretudo o vosso pai e a vossa mãe. Dêem-lhes o que puderem, ajudem-nos como se deve ajudar alguém que vos ajudou tanto. E mais importante, pelo poder das Três Jóias, que os nossos pais e todos nós cresçamos e prosperemos com as virtudes de saddhā, sīla, chaga e pañña.


GLOSSÁRIO
Arahant – Literalmente, um “Meritório”. Uma pessoa cuja mente está livre de impurezas (kilesa), que abandonou todos os dez grilhões (saṃyojana) que prendem a mente ao ciclo de renascimento, cujo coração está livre de efluentes mentais (āsava) e que por isso não está destinado a mais renascimentos. Um título para o Buda e os seus discípulos de mais elevado nível.

Dhamma – (1) um fenómeno em e por si mesmo; (2) qualidade mental; (3) doutrina, ensinamento; (4) nibbanā*. Igualmente, princípios comportamentais que os seres humanos devem seguir para se ajustarem à ordem natural e correcta das coisas; qualidades da mente que devem desenvolver para ganhar consciência da qualidade inerente da mente em si e por si mesma. Por extensão, Dhamma (normalmente em maiúscula) também é usado para referir qualquer doutrina que ensina tais coisas. Assim, o Dhamma do Buda remete tanto para os seus ensinamentos como para a experiência directa do nibbanā, a qualidade para a qual esses ensinamentos apontam.

*Nibannā – Libertação final de todo o sofrimento, o objectivo da prática budista. A libertação da mente dos efluentes mentais (āsava), das impurezas (kilesa) e da ronda do renascimento (vaṭṭa) e de tudo o que pode ser descrito ou definido. Como este termo também denota a extinção de um fogo, ele acarreta consigo as conotações de sossegar, acalmar e de paz. (De acordo com a física ensinada na altura do Buda, um fogo ardente agarra-se ou adere ao seu combustível; quando extinto, torna-se livre.) Em certos contextos, “nibbanā total” refere-se à experiência do Despertar; noutros, à passagem final de um arahant.

Pāramī – Perfeição de carácter. Um grupo de dez qualidades desenvolvidas ao longo de muitas vidas pelo bodhisatta*: generosidade (dāna), virtude (sīla), renúncia (nekkhamma), discernimento (paññā), energia/persistência (viriya), paciência/capacidade para resistir ou suportar (khanti), autenticidade (sacca), determinação (adhitthāna), boa vontade (mettā) e equanimidade (upekkhā).
*Bodhisatta – “Um ser empenhado em Despertar”; o termo usado para descrever o Buda antes de ele efectivamente se tornar Buda, desde a sua primeira aspiração à budicidade até ao momento do seu total Despertar.

Sangha – Ao nível convencional, este termo remete para as comunidades de monges e monjas budistas; ao nível ideal, remete para os seguidores do Buda, leigos ou ordenados, que atingiram pelo menos a “entrada na corrente” (sotāpanna), o primeiro dos caminhos transcendentes (magga), que culminam no nibbanā.

Vinaya – A disciplina monástica budista, literalmente “que conduz à saída”, porque a observância dessas regras “conduz à saída” de estados mentais nocivos; também se pode dizer que “conduz à saída” da vida doméstica e do apego ao mundo. Estendendo-se por seis volumes na versão impressa, as regras e as tradições do Vinaya definem todos os aspectos da forma de vida dos bhikkhus [monges] e das bhikkhunīs [monjas]. A essência das regras para os monásticos está contida na Pāṭimokkha*. Em conjunto, o Dhamma e o Vinaya formam o núcleo da religião budista: “Dhamma-Vinaya” – “a Doutrina e Disciplina – foi o nome que o Buda deu à religião que fundou.
*Pāṭimokkha – O código básico da disciplina monástica, que é recitado quinzenalmente em pāli e que consiste em 227 regras para os monges e 311 para as monjas.
   


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Impresso em 29/3/2024 às 5:27

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