Fundação Maitreya
 
Epicteto e a Sabedoria Estoica

de Lubélia Travassos

em 12 Nov 2021

  Com este texto, pretende-se expor e, ao mesmo tempo, actualizar algumas questões pertinentes sobre a Filosofia moral de Epicteto, e aproximá-la à presente época. Supõe-se que haverá uma certa compreensão, ao se apresentar algumas hipóteses sobre: a ética de Epicteto condicionada à fundamentação antropológica, que se encontra na tradição do pensamento antigo, com o fundamento de uma ética de virtudes. A antropologia estoica, no universalismo do logos, expõe as justificativas, que evidenciam, que a antropologia é indissociável da ética no conjunto do estoicismo, onde se inclui Epicteto. No diálogo com Aristóteles, onde há uma aproximação e uma ruptura, vê-se um desenvolvimento, a partir da análise de pontos cruciais da Filosofia prática aristotélica, que se relaciona com a posição ética de Epicteto. Por sua vez, na introdução aos fundamentos da ética em Epicteto, analisa-se a possibilidade de compreender a filosofia prática de Epicteto, mediante dois eixos teóricos: o conceito interno do homem, como sendo uma consequência do logos e, por conseguinte, como uma antropologia, que confirma a primeira hipótese; e uma perspectiva justificada como sendo viável, de entender a ética em Epicteto, como a ética das virtudes.


Na Filosofia antiga, ler um texto de referência, tem como objectivo transportar o seu autor para a vida, à exposição oral, ao debate, e manter vivo, o mais possível, o discurso oral. É fundamental salientar, que o discurso oral não deve ser um monólogo, sendo que a própria filosofia o impede. Por isso, deverá manter-se a riqueza no diálogo, porque envolve o dizer, o escutar, mas, não deve dispensar a pergunta, a averiguação, e a contestação. É preciso ter em conta, que o principal propósito não é demonstrar apenas a erudição, mas sim, haver a intenção de gerar novas ideias, novos pensamentos, novas maneiras de interpretar e compreender, e de criar novas maneiras de filosofar. E, esta filosofia tem como objectivo transformar a maneira de ser do indivíduo. Em suma, na antiguidade, a Filosofia visava aproximar o discurso do logos, ou seja, da sua racionalidade.

Podemos considerar múltiplas as especificidades que compõem o conjunto, a que se dominou Filosofia, nas suas origens. O conjunto primário do filosofar humano, na sua origem histórica, é constituído pela lógica, física (physis), ontologia, a ética e a estética. Porém, na unicidade do sistema estoico podemos encontrar três espécies: a lógica (uma lógica proposicional), a física (a metafísica e a filosofia natural), e a ética. Como homem histórico, Epicteto sentiu no seu corpo e nas suas crenças, a vivência ordinária, na Roma dos Césares, ao experimentar a influência do poder e da arrogância de um Império e dos seus mandatários, em todos os sectores da vida humana. Sendo exilado de Roma, e escravo liberto, estava longe de poder ostentar o orgulho aristocrático, tão comum ao patriciado romano, por isso, encontrou na Filosofia, um lugar e meio para manifestar o seu pensamento, para poder compreender a própria liberdade.

Na Filosofia de Epicteto, o estudo da ética, quando é compreendido, centra-se, principalmente, nalguns apoios teóricos. Neles, poderíamos incluir: a origem socrática e a matriz estoica. Zenão e Sócrates são modelos na conduta moral, nos princípios de estoicismo antigo, e legam, a Epicteto, uma metafísica antropológica, com uma crença forte no logos, não só como razão ordenadora, mas, também, como divino, como Deus. Não obstante, esta metafísica antropológica é, igualmente, uma ética, porque ao corresponder ao logos é ter a melhor conduta possível. Desta forma, conduzir-se bem na vida é, ter correspondência ao logos. Então, segundo tais teses, não é possível separar a ética da antropologia, a virtude do logos, e o conhecimento da moral.

De acordo com a Antropologia estoica: o universalismo do logos, o estoicismo, de todas as filosofias antigas, foi a mais difundida e a menos reconhecida no pensamento ocidental. O estoicismo dá início a uma longa tradição, que considerava o local de origem o primeiro princípio de civilidade. Enquanto o grego se considerava a antítese do bárbaro, o romano considerar-se-á assim, depois, em relação aos outros povos. Porém, a filosofia estoica possuía a dignidade do homem enquanto tal. Nota-se que há uma originalidade própria do pensamento estoico, ao requerer um universalismo ético para além das fronteiras imperiais, não havendo distinções sociais, familiares ou políticas, que garantissem a validade de uma pretensa superioridade de uns sobre os outros.

Na verdade, verifica-se que é, sobretudo, a partir do estoicismo e de outras escolas helenísticas e imperiais, que a Filosofia toma uma dimensão, que está para além, tanto de um território político e geográfico específico, como para além de alguns indivíduos privilegiados, quer seja social ou intelectualmente. Já se encontrava essa atitude no fundador da Stoá grega de Zenão, o fundador do estoicismo, no ano 300 a.C., em que Zenon formou o seu grupo filosófico, conhecido no início de “zenonianos”, mas foram, por fim, alcunhados “estoicos”, que ficaram, assim, denominados, devido ao pórtico pintado (Stoá Poikile), onde costumavam reunir-se. Zenão ensinava que o homem tinha dignidade, não de cidadão, mas de homem. De acordo com Gazolla (1999): “O mundo é a verdadeira cidade, sem fronteiras nacionais, e sem etnias”. Não há dúvida que o postulado do universalismo estoico é um valioso legado para a história do Ocidente, e que caracteriza, junto com o logos, a antropologia estoica.

Deste modo, as Escolas de Filosofia, como a estoica, abrem-se para aqueles que, ao servirem-se da sua vontade individual, tornam-se aceites nas suas práticas, nos seus exercícios, desde que se dispusessem à adesão dos princípios postulados. É com razão que o historiador francês Paul Veyne (1989) afirma: “Ele (o filósofo estoico) é representante de uma ‘contracultura’ prestigiosa no interior da própria elite […] Na exortação estoica, o homem da classe superior era encorajado a viver de acordo com a lei universal do cosmos, sem se deixar encerrar e limitar pelas particularidades frágeis e pelas paixões ardentes da sociedade unicamente humana.” Para Veyne “contracultura” significa o modo de vida estoico, sendo a sua justificativa clara, por se opor à moral romana, aristocrática, ao extremo, racista, violenta e egoísta, e onde podíamos encontrar no símbolo imperial da águia, a correspondência ao orgulho pátrio. Verificamos, que parece haver uma ruptura entre o mundo da história e o mundo da filosofia. Dá a impressão que o filósofo, para viver como filósofo, tinha que agir como se vivesse num mundo próprio de aspirações particulares, embora não devêssemos pensar assim.

Certo é que o filósofo estoico vive num mundo histórico, real, e não dualista. Ele propõe-se viver da maneira considerada a mais virtuosa e correcta, a mais perfeita segundo a natureza, ou seja, segundo a vida perfeitamente identificada do logos. Contudo, nesta identificação em que entra o indivíduo e o logos, embora seja um princípio natural, pode ser realizada apenas, a partir da compreensão da racionalidade deste logos, e da compreensão que cabe a si no uso da sua racionalidade. Ao contrário, sem esta compreensão racional do indivíduo, existirá a negação do princípio racional, que conduz, de forma universal, os eventos do mundo. Consequentemente, o princípio base da filosofia estoica é uma antropologia (psicologia racional).

Uma vez que a dignidade do homem, enquanto homem, fundamentado na sua origem, numa antropologia cósmica, o logos é o “télos”, a partir do qual, a dignidade humana é considerada e onde a humanidade encontra o seu valor e a sua racionalidade. Por conseguinte, ao postular o fundamento do homem, como sendo a manifestação da Razão universal, temos de dissociar o indivíduo de estado, e unir todos os indivíduos, não ao poder temporal ou a uma classe e, então, reconsiderar o homem comum a ele próprio, enquanto ser humano. Assim, ao ocupar-se de si, mediante a compreensão da universalidade e da racionalidade do logos é sair, utilizando um termo de Séneca, da “stultitia” (sair da stultitia é fazer com que se possa querer o eu, querer a si mesmo, voltar-se para si como o único objecto livre que se pode querer, sempre, pelo que é o oposto da stultitia, que não pode querer este objecto, porque, ela caracteriza-se exactamente por não querer). A expressão de racionalidade, é onde o homem se realiza, na medida em que pode agir no mundo, e expressar a sua moralidade na conduta. No entanto, isso prevê a submissão ao logos, pois, o logos é a plena expressão de uma racionalidade universal e, é a ela, que o homem deve corresponder, no próprio uso da sua razão.

Portanto, agir de acordo com o logos é a condição para se realizar a própria natureza humana. Em linguagem aristotélica, seria atingir o fim natural, em que algo se propõe desde a sua origem, isto é, encontrar, em pleno, o fim para que se foi criado. Assim, para o estoico, o fim natural do homem, é o de atingir a plenitude do logos, ao fazer do próprio logos o condutor das suas acções. Porém, este facto não exclui a liberdade, nem a vontade do homem, mas sugere que este deve elevar-se, em razão e virtude, de modo a poder realizar a sua plena natureza humana.
Epicteto, como professor consciente da sua função, e como filósofo, sabia da importante tarefa que exercia, e que o fez continuar a exercer a sua função, principalmente depois do exílio a que se viu obrigado, e mediante a proibição do ensino de filosofia, em Roma, decretado pelo Imperador Domiciano, no ano 93 da nossa Era. Nota-se, também, em Séneca a profunda consciência que revela as crenças daquele que se dedica à Filosofia. Ser filósofo no mundo antigo é, saber da responsabilidade que cada um carrega sobre si e sobre os outros. É ter consciência clara do dever, e o filósofo estoico não se esquiva ao julgamento da sua própria consciência.

No nosso tempo, ocupar-se consigo mesmo, pode apresentar-se como apenas mais uma característica de egoísmo ético e social da nossa época. Porém, existem alternativas, pois, há e sempre houve, outros caminhos a percorrer e, mais uma vez, na voz que ecoa clamando novos rumos, a História é proclamada na Filosofia. Não obstante, os filósofos que a manifestam, são aqueles que não aceitam o esvaziamento do cepticismo e do niilismo, mas, ao contrário, creem no significado profundo da vida humana. Isso significa a incorporação no conceito de homem, que está para além do próprio homem.

Séneca, quando escreve a Lucílio (SENECA, Livro II, Carta 16, 3-5), encontramos uma oportunidade enérgica para se compreender o que era a Filosofia, no período imperial romano, e mais, o que ela ainda deveria significar, mais uma vez: «Verifica, acima de tudo, se progrediste no estudo da Filosofia ou no teu próprio modo de vida. A Filosofia não é uma habilidade para exibir em público, pois, não se destina a servir de espectáculo; a Filosofia não consiste “em palavras, mas em acções”. A sua finalidade não consiste em fazer-nos passar o tempo com alguma distração, nem em libertar o ócio do tédio. O objectivo da Filosofia consiste em dar forma e estrutura à nossa alma, “em ensinar-nos o rumo na vida, em orientar os nossos actos, em apontar-nos o que devemos fazer ou pôr de lado” […] Sem ela ninguém pode viver sem temor, nem ninguém pode viver em segurança. Vemo-nos, a toda a hora, em inúmeras situações, em que carecemos de um conselho: pois, é a Filosofia que no-lo pode dar […] Quer seja algum deus moderador do universo, que ordene os acontecimentos, quer seja o acaso que, desordenadamente, empurre aos baldões o curso da vida humana, a Filosofia deverá proteger-nos.»

Esta passagem, escrita por Séneca, no século I da nossa Era, contribui, sobremaneira, para a compreensão, do que era esta relação íntima entre a Filosofia e a construção de um procedimento existencial “de cuidado de si”, baseada, no princípio antropológico de racionalidade do logos (expresso na natureza humana) e direccionado para a felicidade (eudaimonia). É preciso salientar que o estoicismo rompe com o dualismo platónico e, também, não partilha com a visão cristã de um mundo além da Terra. O cosmos estoico é o todo (hólon). “Os estoicos costumavam distinguir o ‘todo’ (hólon) da ‘totalidade’ (pán), sendo a totalidade a soma do todo (isto é, o Kósmos) com o vazio infinito, que o envolve. Dada a crença na unidade, a continuidade e a coesão do Kósmos, eles negavam a existência de qualquer vazio dentro dele. Porém, eles propunham um vazio extra cósmico, que abrigasse as expansões e contracções cíclicas”.

A Filosofia é o saber necessário e primordial e, tanto a vida prática, como a teórica orientam, portanto, o juízo e a acção. Constituindo-se, como prescrita para o agir, e para o pensamento, a Filosofia é o saber necessário à alma (psikhé). Sem ela, não estaríamos preparados psicologicamente para os reveses da vida e, nem, suficientemente, fortalecidos na nossa personalidade moral. Por conseguinte, ela actua como uma ferramenta construtora de subjectividade e crenças, mas também, propõe a vida correcta aos indivíduos. A Filosofia revela caminhos possíveis à conquista da felicidade e ao pleno exercício da racionalidade, tanto prática, como teórica, pelo que uma é consequência da outra, e o seu contrário também se afirma como verdadeiro. No que respeita ao acto de escrever Cartas, como fizeram Séneca, Epicuro, e Paulo de Tarso, na tradição cristã, revela uma prática intencional de transmissão do saber. Mas, não de um saber puramente teorético (sophia) ou doutrinário, pois, são feitas indicações sobre como proceder, além de serem indicados exercícios existenciais, diários, que se podem chamar de exercícios espirituais, tais como: os exercícios de abstinência, o exame de consciência, a reflexão diante das representações, ou seja, a conversão de si, que implica, necessariamente, a posse de si.

Por conseguinte, a Filosofia manifesta-se, assim, como modo de vida. A arte de viver (tékhne toú biou), como escreve Foucault (2006, pag155), por isso, “trata-se de corrigir mais do que instruir”. A principal preocupação é, como se deve proceder na acção. Logo, existe a indissociabilidade com a virtude, e com o modo de adquiri-la. Tal como se encontra em Epicteto, na seguinte passagem do Encheiridion (33, 13): “Quando te fores encontrar com alguém – sobretudo, algum entre os que parecem proeminentes – descobre, por ti mesmo, o que Sócrates ou Zenão fariam em tais circunstâncias, e não te faltarão meios para agir convenientemente”. Por isso, tal como nos faz crer Epicteto, são necessários modelos de conduta, símbolos da mais alta dignidade da conduta humana. São modelos de comportamento, inspiradores da acção, modelos de como se deve proceder na vida cotidiana, e nos eventos cotidianos. Contudo, é preciso que os indivíduos se compreendam a si mesmos, e compreender-se é reconhecer-se como indivíduo de natureza racional, integrado à racionalidade do Universo. Para alcançar tal conduta e estado mental, deve-se ter como imperativo, a prática permanente ao longo de toda uma existência, de exercícios que assegurem a eudaimonia, e promovam uma vida constantemente virtuosa. É, tal como um longo e constante treino, na vida de um atleta, cujo objectivo é a conquista. A diferença é que aqui, para o seguidor do estoicismo, a conquista, ou seja, o domínio, é principalmente sobre si mesmo (enkrateia).
   


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Impresso em 29/3/2024 às 14:43

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