Fundação Maitreya
 
A Sanidade

de Ajahn Sucitto

em 08 Nov 2023

  O objetivo desta prática vai para além da calma. Está relacionado com intenção, o impulso de fazer; e uma vez que criar uma autoimagem é aquilo que fazemos, lidar com o fazer é a chave para nos libertarmos do ‘eu’. Portanto: quaisquer efeitos emotivos que nós experienciemos dão origem a intenções; o coração responde ao contacto. E o ‘eu’ surge como aquilo que foi afectado, alegrado ou preocupado pelo contacto. Depois, como fomos estimulados, há algo em nós que salta: intenção, volição, o nosso desejo de fazer. O ‘eu’ surge como um agente, com pensamentos do género: "faz isto" ou "aquilo está mal. Não faças isso". Esta resposta a um sinal gera aquilo que acreditamos ser o nosso ‘eu’ nesse momento: confiante, nervoso, ameaçado ou carinhoso. Isto é kamma: a acção psicológica que gera ‘aquele’ que sentimos ser. Há muito potencial de volição na mente humana. Isto é bom, se for usado sabiamente. Mas quando está relacionado com a autoimagem egóica, vai trazer sempre desassossego. Sabem como é: "Eu preciso de arranjar algo, fazer alguma coisa. Não posso perder tempo." E depois: "Será que está suficientemente bom?" Isto é especialmente importante porque nos dias de hoje a intenção não se resume a obter prazer ou vencer inimigos: estamos fortemente condicionados pela ética de trabalho.

Trabalhar para atingir a sanidade
A autoimagem faz com que estejamos constantemente preocupados em ser úteis e eficazes. A desvantagem é que o trabalho nunca acaba – isto porque a intenção que está associada à nossa necessidade de sermos bem-sucedidos e alcançar objetivos é um veículo para o Tirano. Podemos sentir que a nossa intenção deve estar alinhada com o desejo de tentar sempre alcançar algum objetivo. Mas quando esse desejo não está do nosso lado, e o objetivo é uma ideia na nossa cabeça, é muito improvável que consigamos chegar a bom porto.

No entanto, a mente não é obrigada a estar constantemente em modo "Faz isto" ou "não faças aquilo"; ela pode aprender a pausar, alargar o foco e sentir o que se está a passar quando experiencia contacto. E com essa mudança de intenção, as acções que formam uma identidade com base nesse contacto são diminuídas. Desta forma, não há a criação de um ‘eu’ que tem de se apressar ou sentir inadequado. É claro que pensamentos e emoções ainda podem ocorrer, mas deixam de ser reações automáticas que levam à repetição dos mesmos hábitos antigos e, ao invés, ganhamos a liberdade de escolher, e podemos separar-nos do kamma. Este abrir mão das intenções é um aspeto importante do processo de iluminação.

Consequentemente, trabalhei arduamente para não ter objetivos! Por exemplo, costumava ter uma enorme obsessão com manter limpo e arrumado o quarto que me era dado para viver. Reparei que andava incessantemente à volta do quarto a varrer e deixar tudo perfeitamente arrumado a qualquer altura do dia ou noite. Depois a cortina parecia necessitar de ser dobrada, eu fazia isso e sentava-me; De seguida a grelha da lareira precisava de ser limpa... e por aí a diante. Portanto, eu decidi passar uma semana sem limpar o quarto; apenas colocaria as coisas no seu devido lugar, mas sem limpar nem arrumar demasiado, e deixando o pó acumular. E quando fiz isto pude sentir a volição de arrumar, como uma comichão, reconheci-a e contemplei a força dessa intenção, e abri mão dela até que a mente começou a chegar a um estado tranquilo. Com prática, fui capaz de tomar decisões sobre aquilo que era apropriado limpar e arrumar, partindo desse estado tranquilo.

Um dos momentos mais maravilhosos deste período aconteceu durante o almoço. Tendo recebido a refeição, eu estava sentado a contemplar a minha tigela com a comida dentro, quando os pensamentos familiares apareceram: "Que quantidade?" e "Vou mesmo comer mais do que...?" Mas desta vez fui capaz de ouvir realmente o quão patética é a voz do Tirano. Depois algo muito claro em mim disse-lhe para se calar, pois eu ia comer a minha refeição, e por isso necessitava de prestar atenção àquilo que estava realmente a acontecer, e poderíamos voltar aos julgamentos mais tarde. Houve uma sensação de sobressalto – e o Tirano fugiu sorrateiramente.

Portanto eu recomendo descontrair as intenções e ter um período de consciência plena, sem objetivos. Tenta cinco minutos, para experimentar – e repara na sensação: "O que é suposto fazer agora? Não me sinto bem. Estou a desperdiçar o meu tempo. Devia estar..." Não leva muito tempo até que o Tirano Interior entre em cena; o seu reino principal é o da acção. O Tirano não gosta nada de não ter objetivos: "Qual é o objetivo disto? Vais passar o resto da tua vida a perder tempo assim?" Mas nós não vamos ficar sem objetivos para o resto da vida; só o fazemos durante cinco ou dez minutos, simplesmente para sentir a ânsia de fazer, e questionar a sua validade.

Tenta! Permite que qualquer pensamento, qualquer sentimento, seja sentido e reconhecido somente pelo que é: um visitante. Até podes estender a prática por meia hora. Se te apetecer levantar, levanta-te. Se te apetecer andar, anda de forma consciente. Permite-te descontrair, mantendo-te conscientemente no corpo. Sintoniza-te com o espaço vigilante que se forma na tua mente. Confia nele. Observa cada impulso, mas não ajas nem reajas sob a sua influência. Permite que se forme um sentido de direcção mais intuitivo. Quando faço isto, não enlouqueço. Pelo contrário, há uma suavização das intenções que me trazem de um estado de movimento constante no espaço e tempo, para entrar no momento presente onde os pensamentos abrandam ou param. Desta forma, a prática conduz muito naturalmente ao processo meditativo.

Quando nos libertamos do controlo do Tirano, a intenção deixa de ser dominada pela central programadora da cabeça, e passar a intuir com base numa sensação daquilo que é correcto. Sentimo-nos em pleno equilíbrio na nossa situação e consequentemente a noção de que somos algum objecto alienado no mundo começa a desvanecer-se. Isto é um regresso à base da intenção correcta. E apenas a partir daqui podemos oferecer a nossa sanidade básica ao mundo.
Depois, mesmo quando fores a algum lado, tens um centro que não se move. Mesmo quando as mãos e mente estão ocupadas, tens um coração que está tranquilo. Ele sabe que estas acções são simplesmente acções. Elas podem ser provenientes da compaixão e do cuidado, ou simplesmente como forma adequada de responder às circunstâncias do mundo. Elas não requerem que o coração se divida em ‘eu’ e o ‘outro’. Porque acções verdadeiras não necessitam de actores, não necessitam de empregar um Tirano.

Extracto de ‘O Tirano Interior’
de Ajahn Sucitto,
tradução de João Brinco
   


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