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Filosofia Árabo-Islâmica
de Adel Sidarus em 06 Nov 2006 ![]() 1ª Parte Tudo teria começado com um sonho do califa al-Ma’mûn, filho do lendário Hârûn al-Rashîd. Nesse sonho estava sentado em frente dele, num daqueles sofás orientais, um homem de cara simpática, tez clara e viva, testa larga, olhos azuis. Estupefacto, o Emir dos Crentes pergunta: “Quem és?”. O homem responde: “Aristóteles”, e convida o seu interlocutor, extasiado, a fazer-lhe outras perguntas. Al-Ma’mûn interroga-o, então, acerca da “questão maior”: “O que é bom?” – “O que é bom para o espírito” – responde Aristóteles – e depois o que é considerado bom segundo a Lei (sharî‛a). – “E mais?”, pergunta o califa. – “O que é bom para o povo”. Finalmente, o Estagirita convida o califa a considerar como “ouro” quem o informasse acerca do Ouro (da alquimia) e a aderir rigorosamente à doutrina do tawhîd: a unicidade/transcendência absoluta de Deus, pedra basilar da fé e da predicação islâmicas. Foi assim – explica Ibn al-Nadîm – que o califa decidiu procurar, por todos os meios, as obras dos filósofos gregos e mandar traduzi-las para o árabe. Independentemente da historicidade do relato, é um facto que a filosofia islâmica nasce e se desenvolve na senda da filosofia grega, tomando-lhe o próprio nome falsafa. Veremos que tipo de “filosofia” chegou aos Árabes... Notemos, para já, a preeminência da figura de Aristóteles e a ligação entre Filosofia e Ciência – especialmente as ciências naturais e ocultas. Muito mais que um sistema ou um corpus de ideias, procurou-se impor a força da razão, descobrir e desenvolver as potencialidades do espírito humano – melhor: divino-humano, pois que não há contradição entre as suas conclusões e descobertas e a Revelação, como o relato da cena o frisa. Ambos concorrem para o “bem do povo” e do mundo governado pelo “Estado perfeito” – no caso, o Estado islâmico. Como diz ainda o texto, houve no princípio um intenso movimento de traduções, pagas literalmente a preço de ouro (em função do próprio peso dos códices...). Realizavam-se, em geral, no quadro ou sob a alçada da “Casa da Sabedoria” (Bayt al-Hikma) de Bagdade: uma verdadeira Academia-Biblioteca, similar ao antigo Mouseion de Alexandria. A instituição existiu, na verdade, antes de al-Ma’mûn; foi porém durante o seu reinado que conheceu o seu período áureo. No auge da sua glória, Bagdade, encruzilhada da China, das Índias e do Médio Oriente helenizado, foi a capital científica e intelectual do mundo de antanho. À semelhança da poesia, da arte ou da música, a filosofia e a ciência foram algo suspeitas nos meios religiosos ortodoxos. Mas as exigências universalistas do Império, multi-étnico e pluri-religioso, a protecção de príncipes iluminados e a curiosidade dos intelectuais fizeram vingar o papel duma Razão una e universal. Para ilustrar essa abertura de espírito que vigorava então, vemos o que dizia o primeiro grande filósofo árabe, Abû Yûsuf Ya‛qûb al-Kindî (796-873?): “Não devemos ter vergonha de reconhecer a Verdade e torná-la nossa, qualquer que seja a sua origem, mesmo que ela nos chegue de gerações antigas ou de povos alheios”. Fazia, quiçá, eco ao logon (hadîth) do Profeta: “Procurai a ciência até na própria China!”. Num outro contexto, ele escreve: “O meu intento é transcrever a totalidade do que os Antigos nos legaram sobre a matéria. A seguir, completar ou aperfeiçoar o que não exprimiram plenamente, e isto em consonância com o génio da nossa língua árabe e dos usos e costumes do nosso tempo e das nossas próprias capacidades”. Os filósofos muçulmanos acreditam na unicidade da Verdade ou Sapiência (hikma). Terá havida como que uma inspiração divina dos antigos filósofos, em analogia à revelação transmitida aos profetas e coroada pelo evento corânico. O pensamento filosófico pretende apenas aprofundar, explicitar, promover as verdades eternas contidas no Corão. As primeiras traduções Até então, princípios do século IX (III da Hégira), nos territórios do império árabo-muçulmano, a filosofia, à semelhança das ciências naturais e exactas, era apanágio dos não-muçulmanos, sejam eles de língua grega, siríaca, persa ou O que se traduzia? Qual é o tipo de filosofia grega que se transmitia e que serviu de ponto de partida para a reflexão filosófica no Islão? Com a excepção dos pré-socráticos, a quase totalidade do pensamento grego: platonismo, aristotelismo, estoicismo, neopitagorismo, neoplatonismo. Só que estas doutrinas chegaram em geral através da síntese aristotélica ou reformuladas pelo peripatetismo alexandrino. Já o notámos no relato do sonho do califa, Aristóteles era considerado o corifeu dos pensadores da Antiguidade, e a sua filosofia, o ponto de chegada perfeito do movimento intelectual grego. O próprio neoplatonismo, tão perto da perspectiva e sensibilidade religiosa, não foi apreendido na sua originalidade primeira, mas antes sob o ponto de vista aristotélico. Em sinal contrário, foi atribuída ao Estagirita uma série de textos neoplatónicos que mascararam a real oposição entre o idealismo platónico e o positivismo e naturalismo aristotélicos: caberá a Averróis de Córdova, já no declínio da sociedade islâmica, dissipar o mal-entendido. Em tudo isto se nota bem a mão dos compiladores e grandes comentadores da Baixa Antiguidade, como Alexandre de Afrodísias, Proclo ou Temístio. Lembremos também a figura de Galeno, o expoente máximo do eclectismo e da fusão entre filosofia e ciências naturais, conduzindo a um profundo humanismo (o corpus árabe das suas obras integra textos perdidos no original grego!). Também a tradição gnóstica, carregada das ideias herméticas nascidas no Egipto e das concepções místicas do Irão e da Índia, era conhecida e apreciada pelos muçulmanos dos séculos VIII-X. A referência às grandes civilizações da Antiguidade leva-nos a lembrar uma verdade histórica. Na senda das conquistas de Alexandre Magno (mais de três séculos antes da nossa era) criara-se uma cultura comum a toda essa zona e na qual se fundiram os vários legados existentes. A cultura científico-filosófica grega, ou melhor “helenística”, que foi transmitida ao Mundo islâmico, era já fruto desta simbiose... Correntes do pensamento filosófico Agora, como é que os pensadores muçulmanos assimilaram, adaptaram e desenvolveram tudo isso? Quais eram as suas escolas e doutrinas? O que trouxeram de novo ou de original para a filosofia universal? Podemos distinguir, esquematicamente, três grandes escolas ou, antes, correntes filosóficas no Islão. A primeira, e sem dúvida a mais bem elaborada e a que teve maior impacto nas gerações futuras – tanto islâmicas, como cristãs ou judias... – foi o neoplatonismo. Segue-se à época das grandes traduções em Bagdade e tem o seu expoente máximo na figura multifacetada de Avicena (Ibn Sînâ). Desenvolveu-se, em especial, no Oriente islâmico (Irão, Mesopotâmia, Síria), sem nunca deixar de estar subjacente a todo o pensamento filosófico árabe. Não esqueçamos também o seu impacto na primeira escolástica europeia cristã (séc. XII). Tendo em conta o que se disse acerca das origens imediatas do movimento filosófico na sociedade islâmica, pode-se adivinhar os contornos desse neoplatonismo islâmico: uma síntese harmoniosa e integrada (ou seja, não se trata de mero sincretismo), uma síntese de metafísica neoplatónica greco-alexandrina, de ciência da natureza, de raiz também grega, e de misticismo oriental – o todo fecundado por uma lógica aristotélica de par com uma revelação religiosa Os seus grandes mentores – como já referimos – foram Abû Yûsuf al- Kindî (ca. 796-873), Abû Nasr al-Farâbî (870?-950) e Abû ‛Alî Ibn Sînâ (980-1037). Se o primeiro pertenceu à aristocracia árabe de Bagdade – e é dum certo modo o único filósofo muçulmano plenamente árabe! – os dois outros foram persas ou, pelo menos, de língua e cultura persa. Al-Farâbî nasceu no Turquestão, mas veio estudar e ensinar em Bagdade e transferiu-se, nos últimos anos da sua longa vida, para Alepo, no Norte da Síria. Ibn Sînâ nasceu na Transoxiana e nunca deixou os confins do Irão Oriental. Al-Kindî (lat. “Alchindius”) era muito ligado aos meios “mu‛tazilitas” – a já mencionada primeira escola teológica muçulmana, cuja doutrina foi imposta pela força a toda a comunidade islâmica por um breve, mas decisivo, lapso de tempo. Ele e al-Farâbî foram os verdadeiros fundadores da filosofia islâmica, tendo sido apodados, o primeiro de Faylasûf al-‛Arab (“Filósofo dos Árabes”) e o segundo de Faylasûf al-Islâm (“Filósofo do Islão”). Ambos abordaram todo o espectro das ciências filosóficas então transmitidas, mas não exerceram qualquer profissão, enquanto que Ibn Sînâ foi médico exímio, a nível da teoria e da prática, e exerceu, por várias ocasiões, cargos políticos cimeiros. Al-Kindî representava o intelectual puro, al-Farâbî, o verdadeiro “sábio” (hakîm; vivia como um asceta) e o genial e prolífero Ibn Sînâ, que morreu com apenas 57 anos, era um misto de homem pragmático, de trabalhador, de intelectual brilhante e de filósofo místico. A filosofia deste trio “sagrado” baseia-se, em traços largos, numa ontologia que distingue a essência da existência em todos os seres, com a excepção de Deus, princípio primeiro e único de ambas as ordens do Ser. Nele, e apenas nele, há perfeita identidade entre essência e existência. Mercê deste pressuposto fundamental, o qual acautela claramente o princípio da transcendência divina, conseguiu-se recuperar a teoria da emanação do neoplatonismo alexandrino, nomeadamente a ideia base da continuidade cosmológica entre o Universo e a sua causa primeira. Os seres são “possíveis”, quer dizer, têm uma existência possível, se considerados “em si”, mas são “necessários” na perspectiva do seu Princípio último, o qual é “necessário per se”. Um outro tema capital do neoplatonismo islâmico diz respeito à teoria do conhecimento: conhecimento de Deus em relação aos seres particulares, conhecimento do homem em relação ao Universo e ao Deus transcendental. Esta questão está intimamente ligada a uma outra cuja solução lhe fornecerá elementos de resposta. A filosofia árabe rejeita, de um modo geral, o postulado lógico-filosófico da criação a partir do nada (ex nihilo). Mas então, como conciliar a sagrada transcendência divina e o princípio filosófico segundo o qual do uno, da simplicidade absoluta, pode apenas provir uma entidade igualmente una? A solução foi mais ou menos encontrada através de teorias complicadas de processões sucessivas de uma série de “intelectos” (‛aql-s), cada um com a sua esfera própria, a partir do Intelecto primeiro. Estas processões ou emanações forneceram as bases da cosmologia, mas também da teoria do conhecimento, da revelação profética e da experiência mística. Desenvolveu-se também a importante doutrina do “intelecto agente” (al-‛aql al-fa‛‛âl) e o seu papel na intelecção humana, bem como na explicação racional da imortalidade da alma. Esta elaboração fundadora da filosofia no Islão inclui ainda – a nível do próprio discurso metafísico – uma politologia. Situa-se obviamente no prolongamento da politeia grega, mas com a dimensão religiosa que toda a política tem no Islão. Al-Farâbî tem o tratado essencial sobre a matéria: al-Madîna al-Fâdila (“A Cidade virtuosa”), que se pode considerar um pouco como o correspondente muçulmano da Civitas Dei de S. Agostinho. A organização temporal da sociedade tem o duplo condão de assegurar o bem dos homens neste mundo (al-dunyâ) e de os preparar para o outro que há-de vir (al-âkhira). A união ou harmonia entre os membros da comunidade terrestre prefigura a união das almas entre elas e destas com Deus, na vida do Além. Deste modo, a politeia islâmica, a par da sua pretensão de estabelecer no nosso mundo a Lei de Deus revelada no Corão, abre-se para os horizontes místicos do amor universal e da união divina. Retomaremos a questão ao falar do iluminismo oriental, mas não podemos, infelizmente, abordar toda a filosofia ético-mística, a do “Homem perfeito”, que se elaborou na reflexão islâmica com base nos pressupostos metafísicos aqui esboçados. ![]() |
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