Poesias
de Antero de Quental em 16 Nov 2006 "Teria os meus dez anos, quando pela primeira vez, a ouvi recitar a um bom padre, que me ensinava rudimentos de gramática latina. Não ouso dizer que tivesse entendido. E, no entanto, profunda foi a impressão que recebi, como a revelação dum mundo novo e superior, a revelação do ideal religioso. Escapava-me o sentido de muitos conceitos, a significação de muitas palavras: mas, pelo tom geral de sublimidade, pela tensão constante de um sentimento grande e simples, aqueles versos revolviam-me, traziam-se lágrimas aos olhos, como se me introduzissem, embalado numa onda de poderosa harmonia, na região das coisas transcendentes..." A. Q.
EPIGRAMA TRANSCENDENTE Quem vos fez, céu profundo e luminoso, Terra fecunda, poderoso oceano, E a ti deu vida, coração humano, Que és todo um céu e um mar misterioso, Bem sabia que o céu, o mar, a terra Tinham de ser só cárcere e geena, Que havia a vida ser só luta e pena, E campo, o coração, de eterna guerra Por isso o estranho artífice sombrio, Que, concebendo o plano da obra ingente, Irónico talvez, talvez demente, Logo se arrependeu e o confundiu. Não deu seu nome, como o arconte epónimo, À obra de sua mente e sua mão: O Criador furtou-se a Criação … E, sendo um mau autor, guardou o anónimo. LOGOS Tu, que eu (não) vejo, e estás ao pé de mim … E, o que é mais, dentro de mim – que me rodeias Com um nimbo de afectos e de ideias Que são o meu princípio, meio e fim … Que estranho ser és tu (se és ser) que assim Ma arrebatas contigo e me passeias Pelas regiões indefiníveis, cheias De encanto e de pavor … de não e sim … És um reflexo, apenas, da minh’alma … E, em vez de te encarar com mente e calma, Sobressalto-me ao ver-te, e tremo e exoro-te! Falo-te … calas! – calo … e vens atento! – És um pai, um irmão … e é um tormento Ter-te a meu lado! – és um tirano … e adoro-te! QUIA AETERNUS Não morreste … por mais que o brade à gente Uma orgulhosa e vã Filosofia … Não se sacode assim tão facilmente O jugo da divina tirania! Clamam em vão – e esse triunfo ingente, Com que a Razão, coitada, se inebria, É nova forma, apenas, mas pungente Da tua eterna, trágica ironia. Não, não morreste, espectro! O pensamento, Como dantes, te encara e és o tormento De quantos sobre os livros desfalecem … E os que folgam, na orgia ímpia e devassa, Ai, quantas vezes, ao erguer a taça, Param – e, estremecendo, empalidecem! DISPUTA EM FAMILIA Sai na nuvem, levanta a fronte e escuta O que dizem teus filhos rebelados, Velho Jeová, de longa barba hirsuta, Solitário em teus céus acastelados: - «Cessou o império, enfim, da força bruta! «Não sofreremos os mais emancipados, «O tirano de mão tenaz e astuta, «Que mil anos nos trouxe arrebanhados! «Enquanto tu dormias impassível, «Topámos no caminho a Liberdade. «Que nos sorriu com gesto indefinível … «Já provámos os frutos da verdade … «Ó Deus grande! Ó Deus forte! Ó Deus terrível! «Não passas duma vã banalidade! - » Mas o velho Tirano solitário, De coração austero e endurecido, Que, um dia, de enjoado ou distraído, Deixou matar seu filho no Calvário, Sorriu um riso estranho, ouvindo o vário Tumultuoso coro e alarido Do povo insipiente, que atrevido Erguia a voz em grita ao seu sacrário. - Vanitas Vanitatum! Disse; é certo «Que o homem vão medita, mil mudanças, «Sem achar mais que orgulho e desacerto … «Muitos antes de nascerem vossos pais «Dum barro vil, ridículas crianças, «Sabias eu tudo isso … e muito mais! - » DEVO FUGIR-TE (melodia de Schubert) I Deixa que, na linguagem da paixão, /> Eu diga que te adoro, estátua fria! E que me falta o ar e a luz do dia E cessa de bater-me o coração, Quando me escapa a hora e a ocasião De te ver, e prestar, com idolatria, O culto virginal da hiperdulia, Que é a forma da minha adoração Sinto fundir-se-me a alma ao teu aspecto: Qualquer coisa de ti, que toco ou vejo, É para mim uma relíquia santa: É tão grande e puro o meu afecto, Tão fantástico e louco o meu desejo … Que até ver teu marido … isso me encanta! II Amor platónico, ideal paixão, Objectivada só nestes sonetos, Em cujos moldes lanço os meus afectos, E neles imolduro o coração. Nem nas asas da minha aspiração, Descrevendo fantásticos trajectos, Eu pude conceber outros projectos, Bem cônscio de que o mais é ilusão. Porque o amor não resiste à posse, expira, Subindo ao pedestal da felicidade: «É o gosado bem em água escrito». Cai do sétimo céu, se lá subira, Tornando-se, assim como a quantidade, Negativo ao passar pelo infinito. III Não te é dado sentir, não imaginas, Os quadros ideais, que debuchei, Junto de ti, sujeito à tua lei, Ouvindo as tuas belas sonativas. Eu devo a essas mãos alabastrinas Os sonhos mais formosos, que sonhei; E em tão pequena base é que elevei Os castelos, que vês hoje são ruínas. Ó mãos esculturais, órgão perfeito Da linguagem do gesto, mais facundo, Às vezes, do que a boca dos poetas! Se eu as pudera unir sobre o meu peito, Veríeis na minha alma, novo mundo, Nascerem lírios e surgir planetas. IV Vistes só galanteio, amor de sala, Nos sintomas profundos da paixão, Cuidando que eram fogos de Bengala As lavas irrompentes dum vulcão Porque, através do vosso coração, O fogo, a luz do amor, que o meu exala, Como uma raio sujeito à refracção, A força diminui, quebra e resvala. Ora vede que antítese mortal! Vós viveis, qual Andrómeda florente, Entre a neve polar, feliz e calma; Eu, nascido na zona tropical, Sinto queimar a vida à chama ardente Das paixões que devoram a minha alma. V E jogo uma partida desigual: Dei a minha alma a troco dum sorriso, Julgando as portas ver do paraíso Abertas nesses lábios de coral … Como se fora a coisa mais banal, Entreguei-vos minha alma, sem aviso; E vós, minha Senhora, em jogo liso, Dizei, podeis fazer parada igual? Pois (aqui entre nós) ao algodão Podeis pedir a forma, a correcção, Da estátua clássica da mãe do amor, Podeis pôr o carmim, o alvaiade, A beleza talvez, e a mocidade, Mas a alma … oh, essa não se pode pôr! VI Eu não te adoro a ti, adoro o Amor, O princípio, a ideia, e não o facto; Sou filósofo e poeta, um amador, Ardente, sim, mais ideal e abstracto. Não quero usar da vista nem do trato, Eu não dou culto à forma nem à cor; Eu não adoro o Eidos, o retrato, Mas o Tipo, que fez o criador. Excessiva é talvez a teoria … E confesso que a tua formosura É contra ela um silogismo forte. Mas juro-te, meu bem, que te amaria, Paralítico e cego, em noite escura, Sem te ver, nem tocar, até à morte. VII Eu respeito o dever, mas, em verdade, A ideia não triunfa da paixão: São acaso as funções do coração Sujeitas ao império da vontade? Duas forças, dever, fatalidade, O céu e a terra em luta e colisão … Eu proporia a mesma transacção Dos papas e dos reis, na meia-idade: «A alma pertence a Deus, o corpo ao Estado» Dai a César, senhora, o que lhe é dado, A realidade, os frutos do amor; Dai a garganta ao laço social, O vosso corpo ao leito conjugal E a mim a alma, o sonho, o aroma, a flor. VIII Eu pedia somente, assim vos juro, Um olhar inspirado de paixão, O mais nem mesmo existe; a sensação Vive um momento, mas não tem futuro. Não permite o Dever, cárcere duro, Que aos olhos venha a alma e o coração, Como uns presos às grades da prisão, A respirar dali um ar mais puro! Eu sou daqueles que sabem viver, Mantendo-se tão só do ideal, Bebendo o néctar só dum sentimento. O amor, que se inspira do prazer, Tem quase o mesmo interesse material, Que prefere o contracto ao sacramento. IX Ah! Não vinha de vós a luz radiante. Dessa pálida tez só reflectida, Dessa neve polar, branca e pulida, Que os olhos me cegou, de fulgurante. Era a luz, era o sol flutuante Do ideal, da essência indefinida (Ansiedade cruel de toda a vida …) Que a fronte vos dourou por um instante Miragem, visão óptica … mas pude Julgar que te apreendia hoje por fim, Eu que já sem esperança me definho Adeus, sede feliz, tende saúde, Se esse sol vos não queima: enquanto a mim Seguirei anelante o meu caminho. O INCONSCIENTE Já sossega, depois de tanta luta, Já me descansa em paz o coração. Caí na conta, enfim, de quanto é vão O bem que ao Mundo e à Sorte se disputa. Penetrando (com fronte não enxuta) No sacrário do templo da Ilusão, Só encontrei, com dor e confusão, Trevas e pó, uma matéria bruta. Não é no vasto Mundo – por imenso Que ele pareça à nossa mocidade – Que a alma sacia o seu desejo intenso. Na esfera do Invisível, do Intangível, Sobre desertos, vácuo, soledade, Voa e paira a Espírito impassível! 1 MORS-AMOR Esse negro corcel, cujas passadas Escuto em sonhos, quando a sombra desce, E, passando a galope me aparece Da noite nas fantásticas estradas. Donde vem ele? Que regiões sagradas E terríveis cruzou, que assim parece Tenebroso e sublime e lhe estremece Não sei que horror nas crinas agitadas? Um cavaleiro de expressão potente, Formidável, mas plácido, no porte, Vestido de armadura refulgente, Cavalga a fera estranha, sem temor. – E o corcel negro diz: eu sou a Morte! Responde o cavaleiro: eu sou o Amor! NIRVANA Para além do Universo luminoso, Cheio de formas, de rumor, de lida, De forças, de desejos e de vida, Abre-se como um vácuo tenebroso. A onda desse mar tumultuoso Vem ali expirar, esmaecida … Numa imobilidade indefinida Termina ali o ser, inerte, ocioso … E quando o pensamento, assim absorto, Emerge a custo desse mundo morto E torna a olhar as coisas naturais, À bela luz da vida, ampla, infinita, Só vê com tédio, em tudo quanto fita, A ilusão e o vazio universais. Obras Completas de Antero de Quental Ver, Biografia de Antero de Quental na Área Religião e Filosofia. |
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