A Índia e o Afeganistão na Antiguidade
de Krishna Mohan Shrimali em 29 Mar 2007 Alguns historiadores crêem que os núcleos das duas epopeias da Índia (o Rāmāyana e o Mahābhārata) se situavam no Afeganistão e que o palco da grande batalha do Mahābhārata foi, na realidade, a região afegã. Mesmo que tais teses sejam contestáveis, ninguém refuta que a Gandhari, que se privou da vista, e o seu irmão intrigante, Shakuni, eram naturais da região de Gandhāra. Diz-se que Panini, o gramático de sânscrito sem igual (século V a.C.), nasceu em Shalaatura, que fica não muito longe do Jalalabad no Afeganistão dos nossos dias.
“Como um carpinteiro curva o assento de uma quadriga, Curvo este frenesi em torno do meu coração, Será que eu bebi, Soma?”. “Primeiro com Tristama vós desejais avançar, com Rasa, e Susartu, e com Shvetya aqui; Com kubha, e com estes, Sindhu! E Mehtanu, procurais no seu caminho Krumu e Gomati”. “Então não permita que Rasa, Krumu, ou Anitabha, Kubha, ou Sindhu lhe impeçam. Não permita que a aguada Sarayu lhe obstrua o caminho. Que todas as suas bênções estejam connosco”. Estes versículos do Ṛg-Veda, a mais antiga obra literária da Índia, assinalam o início da consciência comum do subcontinente indiano. A predilecção do Deus Indra para Soma, a bebida embriagante, talvez fosse saciada pelo processo de espremer e extrair o sumo dos ramos duma planta florida conhecida por Ephedra que cresce no Afeganistão. E, dos vinte e cinco rios mencionados no Ṛg-Veda, muitos são citados nos dois versículos reproduzidos em cima. O kubha (Kabul), Krumu (Kurrum), Suvaastu (Swat), Sarayu (Hari-rud) e até o famoso Sarasvatī são muitas vezes identificados com os rios dos quatro sistemas hidrográficos do Afeganistão, isto é, os sistemas do Amu Darya, Harirud, Kabul e Helmand. Na sua descrição de Gandhāra, o peregrino chinês, Hsuan-tsang também faz menção do mesmo lugar como sendo a terra natal do Ṛṣi (sábio) Panini. Entre o VI e o IV século a.C., muitas regiões do noroeste da Índia e a região oriental do Afeganistão eram frequentemente parte da mesma entidade politica, isto é, do império persa. Os “gandharianos e indianos” lutaram pelo imperador persa Xerxes na Grécia e um contingente de “alpinistas indianos” lutaram para a província de Arachosia (Kandahar) contra as tropas do Alexandre. “Sendo completados dez anos, o rei Piyadassi demonstrou piedade (isto é, Dhamma) ao povo. E a partir de então fez com que as pessoas ficassem mais pias. E em todo o mundo tudo se tornou próspero. E o rei abstém-se (de comer) seres vivos, tal como o povo. Os caçadores e pescadores reais cessaram de caçar e aqueles indivíduos que antes não se dominavam agora fazem esforços para se dominaram e obedecem aos seus pais e aos anciões. Não era assim antes. E, no futuro, fazendo todas estas coisas, viverão duma maneira mais agradável e melhor que antes.” (Tradução para o inglês de Romila Thapar no livro “Aśoka e o declínio dos Mauryas”). Estas palavras do imperador Aśoka (século III a.C.) da dinastia dos Maurya, foram encontradas gravadas num rochedo em Shahr-i-Quna, a cidade velha de Kandahar no Afeganistão. Esta mensagem de amor, piedade, bondade, fraternidade e respeito pelos anciões foi emitida como um instrumento da política estatal, escrita tanto numa versão em grego como numa em aramaico. Uma outra inscrição da mesma época e também atribuída ao mesmo imperador foi encontrada em Lampaka/Lambaka (identificado como o actual Lamghan na margem setentrional do rio Kabul perto de Jalalabad). O texto desta inscrição é também em aramaico. Porque é que Aśoka escolheu estes sítios e estas duas línguas para se exprimir em espaços públicos? Em primeiro lugar, os contactos da Índia com o ocidente frequentemente foram por via do mundo de comerciantes e mercadores. Kandahar e Herat, dois centos importantes no Afeganistão serviam como pólos nevrálgicos que ligaram a Índia na ponta oriental com o império dos Achaemenidas (persa) e o império de Macedónia (grego) na ponta ocidental. Os séculos do império da dinastia dos Maurya e a época subsequente fortaleceram esta artéria importante. Segundo, as duas línguas utilizadas nestas inscrições indicam que havia uma comunidade substancial de gregos e persas nesta região. Estes indivíduos provavelmente não somente participaram neste comércio mas a sua própria prosperidade talvez dependesse na utilização contínua desta rota comercial. Pouco antes do reinado de Aśoka, houve importantes mudanças no mapa geo-político da Índia setentrional. A expedição de Alexandre o magno até à região dos cinco rios no subcontinente indiano já tinha destruído o grande império persa e depois da sua morte, as guarnições que ele estabeleceu foram administradas pelos selêucidas durante quase setenta e cinco anos. A declaração de independência por Bactria (a região setentrional do Afeganistão), nos meados do século III a.C. assinalou a queda dos selêucidas e deu luz ao assim chamado reino grego-báctrio. Durante mais que um meio século, reinaram sobre a Bactria e a região do noroeste da Índia, até que a pressão das invasões nómadas do norte obrigaram-nos a abandonar os seus domínios báctrios para sempre em cerca de 145 a.C. Todavia, as suas terras indianas continuaram sob a sua jurisdição durante mais algumas décadas e ficaram conhecidos na história como o “indo-gregos”. Embora os reis indo-gregos e grego-báctrios sejam mencionados nas fontes clássicas, seria impossível reconstruir a sua história sem o auxílio de um grande número de moedas cunhadas por eles que foram encontradas – uma fonte valiosa de informação. Significativamente, e por razões óbvias, o Afeganistão é um participante proeminente nesta época de intensa interacção entre a Índia e o Afeganistão (desde os meados do século III até os meados do século I a.C.). Essencialmente, as moedas dos indo-gregos e dos gregos-báctrios que foram achadas no Afeganistão consistem em três principais lotes, isto é, o tesouro de Qunduz, o tesouro de Mir Zakah e as moedas de Ai Khanoum (três grandes achados e moedas isoladas encontradas durante as escavações). O tesouro de Qunduz, encontrado em 1946 num lugar chamado Khisth Tepe na margem afegã do Amu-Darya (o rio Oxus), cerca de 90 quilómetros longe de Qunduz, consiste em 627 moedas, das quais 624 são grego-báctrias e três são selêucitas. Acredita-se que o tesouro foi escondido na segunda metade do século II a.C. O tesouro de Mir Zakah (53 quilómetros este/nordeste da cidade de Gardez) foi encontrado em 1947. Consiste em 13,083 moedas das quais 2757 são dos indo-gregos ou grego-báctrios, 4456 são das dinastias dos indo-cíticos, indo-párticos e kushanas, 5 são moedas gregas e 28 são ilegíveis. 5837 moedas deste tesouro foram identificadas como moedas com marcas de punção e moedas em forma de barra encurvada, e são reconhecidas como as mais antigas moedas do subcontinente indiano. Acredita-se que este conjunto heterogéneo de moedas, a mais nova das quais remonta ao reinado do rei dos kushana,Vasudeva I (século II d.C.), são o conteúdo de dois reservatórios considerados sagrados, onde se desenvolveu a tradição de atirar pequenas moedas como oferendas. A preponderância de moedas de pequenas denominações (drachmas em vez de tetradrachmas) que abrange um período cronológico de mais que 600 anos (século IV a.C. ao século II d.C.) neste tesouro são indicadores do próspero comércio que se deviam ter realizado entre a Índia e o Afeganistão. As escavações realizadas pelo Delegation Archaeologique Francaise en Afghanistan em Ai Khanoum entre 1965 e 1978 revelaram os vestígios duma grande cidade dos grego-báctrios, que floresceu durante 150 anos. Provavelmente foi fundada em cerca de 280 a.C. e finalmente foi destruída pelos invasores nómadas em cerca de 145 a.C. Mais que mil moedas foram encontradas durante estas escavações. Tal como no tesouro de Mir Zakah, aqui também um grande número destas moedas (mais que 700) foram duma série com marca de punção. Além disso, encontraram-se também moedas dos reis selêucidas, grego-báctrios, indo-gregos e kushanas. Destes numerosos numismáticos encontrados em Ai Khanoum, seis drachmas de Agatócles (180-170 a.C.) de Ai Khanoum são extraordinários. Pesando entre 2,328 e 3,305 gramas, estas moedas evidenciam duas figuras masculinas entre duas linhas verticais de uma legenda bilingue e escrito em dois caracteres. As figuras – uma no obverso e a outra no reverso – são idênticas em postura e trajes mas são ao mesmo tempo distintas pelos símbolos que têm nas mãos. No verso encontramos o nome do rei Agatócles na escrita grega enquanto no reverso encontra-se o nome do rei na escrita brahmi como Agathuklayesa. Algumas outras moedas de Agatócles também empregaram a escrita Kharosthi cuja utilização era bastante comum na região da Índia do noroeste, como é óbvio da sua utilização nas versões dos éditos sobre rochedos de Aśoka em Shahbazgarhi e Mansehra. A singularidade destas três drachmas de Agatócles deriva-se do facto que provavelmente são as mais antigas representações antropomórficas de duas divindades populares do panteão vishnuita, isto é, Vasudeva Krishna e o seu irmão mais velho Samkarshan Balarama. Foi possível identificá-los graças à especificidade dos símbolos nas mãos das duas figuras. O deus no verso, que tem um hala (arado) em miniatura na sua mão esquerda e um musala (pilão) na sai mão direita é Samkarshan Balarama. O deus representado no reverso tem um grande chakra (roda/disco) de seis raios, que é o símbolo mais característico de Vasudeva Krishna. O objecto na sua mão direita é talvez um shankha (concha), que, juntamente com o chakra, normalmente caracteriza Vasudeva-Vishnu. Ambas as divindades são adornadas por um xaile e uma tanga e os seus pés são separados. No flanco esquerdo vê-se uma grande bainha numa posição oblíqua e o xaile esconde o copo da espada contida dentro. Um chapéu (ou talvez um capacete guarnecido de tufo) coroa as cabeças de ambas as divindades. O ar bélico que o capacete e a bainha conferem aos irmãos é pouco vulgar e talvez seja devido à prolongada influência grega nesta região. Os vestidos e os compridos sapatos em bico são parecidos com os das descrições de Nearchus, cerca de 150 anos antes de Agatócles. Ao descrever indianos no Punjab vestidos da mesma maneira, ele fala de “um chiton de linho comprido até à barriga da perna, com os ombros envoltos num pano”. Nearchus também ficou impressionado pelo gosto de indianos ricos por sapatos. Conta-nos que “calçam sapatos brancos ricamente adornados, com as solas tingidas em cores diferentes e muito grossas para parecerem mais altos”. Agatócles foi o primeiro rei indo-grego a emitir moedas bilingues e com as duas escritas. Foi sem dúvida uma decisão corajosa. Aparentemente, ao fazê-lo, fez uma decisão ciente de não apenas se proclamar rei dos povos da região na própria língua deles e nos dois dialectos que utilizavam, mas também encontrou espaço nas suas moedas para imagens dos seus deuses (a escolha de Vasudeva Krishna e Balarama sendo uma manifestação da sua sensibilidade para as tradições locais), e não hesitou em encarregar uma casa da moeda local com a cunhagem destas moedas. Mesmo que fossem motivos políticos que influenciariam esta decisão, o facto que Agatócles publicamente demonstrou a sua predilecção para a civilização indiana pela introdução de divindades estrangeiras no panteão oficial do estado reflecte as transacções culturais entre os povos do vale do Oshus e os que habitavam na região ao este do rio Indo. Dada a importância estratégica de Ai Khanoum em termos de sua proximidade aos recursos minerais, as rotas comerciais e aos centros de oásis na região, um estudo das moedas é importante não apenas para a história política e sócio-religiosa mas, ao mesmo tempo, também nos fornece uma perspectiva do comércio da época. As facetas multidimensionais das actividades humanas frequentemente reuniram as antigas regiões da Índia moderna e o Afeganistão numa rede íntima. O Geographike Huphegesis, escrito em cerca do século II d.C. faz menção de Arachosia (a região de Kandahar) como sendo “a Índia branca”. O peregrino chinês, Hsuan-tsang que viajou extensivamente no subcontinente no segundo quartel do século VII, visitou Ka-pi-shih (Kapisha, actualmente chamado Begrem, nos arredores de Kabul). Na opinião do famoso arqueólogo Alexandre Cunningham, nessa época o país “devia ter incluído todo o Kafiristão, juntamente com os dois grandes vales de Ghorband e Panjshir”. Hsuan-tsang narrou as suas impressões da seguinte maneira: “As fronteiras deste país ultrapassam 4000 li (cerca de 4 li = 1 quilómetro) com as montanhas nevadas ao norte e as cordilheiras pretas nos outros lados. A capital tinha uma circunferência de mais que 10 li. Produz muitos cereais, e fruta e madeira, e excelentes cavalos e açafrão; neste país encontravam-se muitas mercadorias raras oriundas de outras regiões; o seu clima era frio e ventoso … a língua escrita era muito parecida coma a de Tokhara; mas o idioma coloquial e as instituições sociais do povo eram diferentes. Usavam panos de lã (maotieh) para as suas roupas interiores, e peles e sarja para os seus vestidos exteriores. As suas moedas de ouro e prata e as pequenas moedas de cobre eram diferentes em aspecto e estilo das moedas de outros países. O rei, que era da casta do kṣatryas (guerreiros), era um monarca benevolente e seguia o Budismo. Todos os anos mandava fazer uma imagem do Buddha em prata duma altura de 6 metros e … dava esmolas livremente aos necessitados e às viúvas e aos viúvos. Havia mais que 100 mosteiros com mais que 6000 irmãos que eram na maioria budistas mahayanistas; os mosteiros e topes (monumentos budistas) eram majestosos e espaçosos e bem conservados. Havia algumas dezenas templos dos Devas; e mais de 1000 seguidores sectários, Digambaras e Paashupatas, e aqueles que vestem coroas de caveiras para enfeitar as suas cabeças”. Begram tinha fama pelo seu vinho delicioso, nomeado em nome do próprio lugar, kapisayana madhu, e a região ficou sob o domínio dos kushanas nos primeiros séculos da nossa época. Era uma parte integral de toda a rede da Rota da Seda. Em Begram, José e Ria Hackin descobriram umas delicadas gravuras em miniatura, esculpidas em cerca de 600 placas de marfim. Uma destas placas de marfim de Begram até chegou ao mundo mediterrâneo – foi encontrada em Pompeii. Pode-se ver claramente as semelhanças das figuras, a execução da linha curvada e a composição de cenas nestas placas de marfim com as peças artísticas de Bharhut, Sanchi, Mathura, Amaravati e Negarjunakonda (c.século II a.C. ao século III d.C.). A vida sensual, alegre e elegante representada nas placas de marfim de Begram é cheia de pormenores. Há cenas onde lindas mulheres estão a arranjar-se languidamente. Penteiam-se. Fazem massagens umas às outras. Olham no espelho. Brincam com os animais de estimação. Brincam às escondidas. E entregam-se aos festivais bacanais duma maneira encantadora. É provável que estas peças decorativas embeleceram os aposentos reservados só para mulheres, que talvez explique a ausência quase completa de representações masculinas, além de um ou dois reis, um moço de cavalos, alguns cavaleiros e caçadores, alguns criados e alguns seres míticos que pertencem ao estilo decorativo. As tradições literárias indianas são repletas de descrições eloquentes de como nenhum homem, além do chefe da casa e o velho guardião da porta (kanchuki) do harém, tinha acesso aos aposentos particulares reservados para as mulheres. O escultor de Begram tinha um grande jeito para o estudo das formas e a anatomia. Isso é óbvio tanto nas figuras femininas como nos desenhos dos animais. Estas gravuras são impressionantes devido à sua representação de ritmo e movimentos. Acções momentâneas são capturadas quase como numa fotografia como, por exemplo, o touro a lamber a perna, o elefante a inclinar a cabeça e a abanar a tromba, o veado a saltar ou a pausar antes de fugir; e o leão com a sua cauda erecta, cheirando o chão, à procura de sua presa. Jeannine Auboyer, que realizou investigações aprofundadas das representações da “vida privada” das pessoas nestas esculturas do marfim afirma que: “As esculturas de marfim de Begram são de interesse excepcional, não somente porque são visivelmente de origem indiana, e porque a sua presença no seio do Afeganistão testemunha, sem nenhuma sobra de dúvida, a representação das esculturas indianas de marfim, mas também porque nos fornecem valiosas informações sobre a arte secular da Índia antiga, cujas representações eram muito raras …”. Cortesia da Revista India Perspectives |
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