Fundação Maitreya
 
Modo de Orar a Deus

de Erasmo

em 20 Jan 2009

  Eis-nos com Desiderius Erasmus Roterodamus, Desidério Erasmo de Roterdão, o principal mestre da Europa no século XVI, o líder intelectual, o crítico das instituições e costumes, o renovador da educação e do ensino, o pioneiro do estudo científico dos textos sagrados e da complementaridade das letras humanas e das divinas, o unificador dos campos opostos religiosos, o apologista da tolerância, do pacifismo e da concórdia, o ressuscitador da “filosofia de Cristo” e da piedade íntima, sábia e livre. «Homem por si só» há quinhentos anos e ainda hoje a inflamar corações acima da ignorância e das facções, e a apurar almas na realização da paz, da verdade, do espírito e da divindade.

Apresentação

Uma vida de viagens, estudos, traduções, comentários e escritos, sobretudo textos educativos, filosóficos e religiosos, mas também muitas lutas, incompreensões, polémicas e uma imensa correspondência, de grande impacto na vida intelectual e religiosa do séc. XVI mas correndo íntima e subterraneamente pelos séculos a dentro como fermento de renovação anti-supersticiosa, anti-facciosa, anti-totalitária e libertadora.

Traduzir, apresentar, anotar e ler Erasmo no séc. XXI, num dos seus tratados espirituais, é uma honra e um privilégio, pois iremos aprofundar e amadurecer com ele alguns dos mistérios da vida e compartilhar a sua lúcida compreensão dos modos de orar, pelos quais nos ligamos mais a Deus e às suas bênçãos e graça.

Quis Erasmo chamar os seres humanos às fontes antigas da Sabedoria, tanto a tradição sapiencial greco-romana como sobretudo a derivada de Jesus e do seu ensinamento, a philosophia Christi, a filosofia de Cristo, ou seja, o amor da sabedoria, de Jesus Cristo, presente nos Evangelhos e, dentro dos seus intérpretes, em especial, em S. Paulo, Orígenes (190-253), Ambrósio (339-397), Jerónimo (347-419) e Agostinho (354-430), assim citados no seu primeiro e famoso Manual do cavaleiro Cristão, o Enchiridion, como aqueles cuja «interpretação é mais acomodada aos sagrados mistérios», e que em 1520, na Ratio verae theologiae,o Método da verdadeira teologia, serão reordenados, por ordem descendente de valor: Orígenes, Basílio, Nazianzo, Atanásio, Cirilo, Crisóstomo, Jerónimo, Ambrósio, Hilário e Agostinho, cujas obras publicou e comentou, numa tarefa ciclópica de génio e de studium, hoje em dia quase impossível, então caracterizadora de alguns dos mestres do Renascimento como Pico della Mirandola, Leon Battista Alberti, Marsilio Ficino, Leonardo da Vinci,
Luca Pacioli ou Michelangelo Buonarroti.

Mas a esse estudo das letras humanas e divinas, desde Orfeu e Homero, Platão e Horácio aos pais ou fundadores ortodoxos, como chamava aos místicos e gnósticos padres da Igreja antiga, as fontes mais próximas de Jesus e do Evangelho, acrescentava Erasmo tanto a importância de uma vida racional, ética e dialogante, como também (já livre do cerimonialismo desnecessário, da hipocrisia, corrupção ou superstição) a piedade douta, ou seja, a boa (fundamentada, esclarecida) e profunda relação interior com Deus e exterior com os humanos.

O que propõe então é o amar ou adorar a Deus em espírito e em verdade, reflectindo-se num ânimo justo, bom e piedoso e na vida como oração luminosa contínua, concretizada no serviço e clarificação (a glória) do bem comum, do próximo, da verdade e de Deus. Certamente, com esforço, conhecimento, ciência, plena atenção: o tão recomendado studium...

Para Erasmo a verdadeira teologia ensinada por Cristo é assim viver pura, simples e virtuosamente, pela força interior divina que nos chama a aperfeiçoar-nos na fé, na esperança e na caridade, pois o Espírito habita no coração das pessoas piedosas. Daqui a sua valorização das Bem-aventuranças.

É pela disposição anímica de seguir correctamente o Cristo («que é caridade, simplicidade, paciência, pureza, ou seja, tudo o que ele ensinou»), que o crente em Deus e nos seus mestres e santos avança na vida e no aperfeiçoamento, para se tornar também um Cristo, que significa um ungido: «todos os que renasceram em Cristo, são Cristos» (Da Concórdia amável na Igreja).

A realização salvífica não está pois garantida por doutoramentos teológicos, cerimónias, peregrinações, votos religiosos ou vida monástica, de que aliás em muitos aspectos Erasmo é crítico, como vemos nos seus famosos Colóquios que o tornaram tanto admirado por muitos, como detestado pelos «bárbaros ignorantes» que recusavam o estudo das línguas, culturas e tradições antigas, ou seja, a universalidade do conhecimento, presente na Retórica, na Filosofia, na Poesia, na Ciência, na exegese livre da Religião, e cujo cultivo e divulgação só faria bem à humanidade.

Uma das razões do grande sucesso na época da “filosofia de Cristo”, designação antiga mas desenvolvida por Erasmo a partir da sua meditação e do seu trabalho para uma versão mais fidedigna do Novo Testamento, e depois desenvolvida nos comentários livres aos Evangelhos, as Paráfrases, está na intuição e vivência em si de Cristo (palavra grega que traduz o Messias hebraico, o Ungido ou ligado a Deus, e que é também, sobretudo com S. João, Logos, ou seja, a Palavra, Verbo, Sabedoria, Razão, ou discurso certo), em parte nascida da realização da presença divina (logóica, diríamos) nos Evangelhos, onde ela respira e vive mais plenamente, e da meditação.
Isto permite a Erasmo tanto recomendar incessantemente a leitura sagrada, ou a oração a partir de palavras dos Evangelhos, como sobretudo tornar vivos os ensinamentos e parábolas de Jesus Cristo, primeiro ao saber estabelecê-los filologicamente mais correctos na versão que fez, magistralmente anotada, do Novo Testamento e, depois, nas Paráfrases, ao passar constantemente do sentido literal para o espiritual, do passado para o presente e o eterno, trazendo ao de cima a riqueza de sentidos transformadores de muitas passagens que pareceriam destituídas de relação eficaz e luminosa com a nossa mente e vida de hoje.

Um tão arguto observador, que tanto viajara e conhecera de pessoas e sociedades, com as suas limitações animais mas também aspirações e exigências de dignidade e espiritualidade, estava preparado tanto para a ironia esperançosa como para a compaixão piedosa e por isso as suas obras ora castigam rindo ora inspiram desejos de fraternidade e caridade, impulsionando consciencializações ou mesmo voos espirituais.

IX
Para Erasmo a vida é uma luta pela ligação divina, sob o perigo constante do enfraquecimento ou mesmo da morte da alma, quando a dignidade, a racionalidade ou domínio das atracções e repulsões, ou mesmo o desejo de solidariedade moral e de vida espiritual, falham. Com efeito, dirá no Enchiridion,o Manual do cavaleiro Cristão: «quando os olhos do coração estão obscurecidos para que não vejas a luz evidentíssima que é a verdade, quando não captas com teus ouvidos interiores a Voz divina, quando careces completamente do sentido do absoluto, pensas que a tua alma estará viva? (...) Se o teu próximo é mal tratado, porque é que a tua alma não sente nada?»

Duas são as armas ou as asas principais a utilizar, o conhecimento e a oração. Conhecimento das letras humanas que naturalmente apoiam as divinas, ou ainda, conhecimento da sabedoria perene, da tradição cultural e espiritual de todos os povos e tempos; gnose de si próprio de quem não é só corpo animal e genético, nem subjectiva e complexa personalidade ou alma, mas na essência espírito, dotado de autoconsciência e lucidez, livre-arbítrio e amor, capaz portanto de conhecer e amar a verdade, a unidade, a Divindade.

Quanto à asa da oração, a procura do florescimento unificador do amor, a descoberta e a coincidência da mente e da vontade com Deus Pai e com o todo, deixemos Erasmo iniciar-nos com este pequeno tratado, o Modus orandi Deum, publicado pela primeira vez pelo sábio impressor Johann Froben, em Outubro de 1524, em Basileia, com sucesso pois surgem doze edições até ao fim do ano da graça de 1525 graças a laboriosos impressores de Estraburgo, Colónia, Nuremberga, Basileia, Cracóvia, Veneza, Antuérpia, se bem que a sexta edição, que é uma versão bastante acrescentada e corrigida por Erasmo, impressa de novo por Froben, em Março de 1525, nunca será tomada em conta pelos editores posteriores, algo misteriosamente... Na península Ibérica surgirá, embora só em 1546, uma impressão espanhola na tipografia sevilhana de Andrés de Burgos, intitulada Tratado de la oracion y forma que todo christiano deve seguir, pois de facto a península estava muito desperta para a experiência da oração tanto vocal como interior e mística, nomeadamente pelas influências mais remotas do sufismo (o sadili) e mais próximas dos franciscanos (tal como Francisco de Ossuna e o seu Abecedario), dos recolhidos e dos alumbrados (ou
dejados, abandonados ao amor de Deus) e do movimento de retorno às fontes bíblicas, fortalecido pela acção do cardeal Francisco Jiménes de Cisneros (1436-1517): confessor da rainha humanista Isabel a Católica, arcebispo de Toledo, impulsionador de uma religiosidade mais esclarecida e espiritual (embora pouco aberto à islâmica, da qual fez queimar muitos livros), reformador das ordens religiosas, patrocinador de vários livros de contemplação, fundador (1ª pedra, 1498; 1ª aula, 1508) da Universidade de Alcalá de Henares (Complutum), e director da pioneira tradução da Bíblia, a Poliglota Complutense, em oito grandes volumes, ali realizada entre 1514 e 1517, embora só impressa em 1520, já depois do Novum Instrumentum, de Erasmo, vir à luz na tipografia “rival” de Froben...

Para além disso, preparando-se o príncipe Carlos para se tornar o imperador do Sacro Império Romano (de origem alemã e unindo cerca de 300 estados da França à Polónia, governados sobretudo por sete príncipes eleitores), rei de Castela (pela morte da rainha Isabel I, e da sua filha Joana, a Louca, casada com seu pai Filipe, o Belo, de Borgonha) e de Aragão (pela morte de Fernando II de Aragão, o marido de Isabel, que não teve filhos do seu segundo casamento), e sendo Erasmo um dos seus conselheiros, havia mais receptividade aos seus livros, pelo que logo em 1516, ainda ao tempo do cardeal Cisneros saía em Sevilha a primeira tradução, por Diego de Alcocer, secretário do príncipe, de uma obra de Erasmo, o Tratado ó sermon del Niño Jesús y en loor del estado de la Niñez. E, em 1517, o cardeal Cisneros, que exercia então o cargo de regente de Espanha, até à chegada do príncipe Carlos em Setembro, convidaria por mais de uma vez a vir até Espanha Erasmo que, embora não vindo, viu serem editadas ou
traduzidas muitas das suas obras (vinte e três edições entre 1516 e 1527).

A fortuna pública deste Modo de Orar a Deus, ainda que grande pelo número das sucessivas reimpressões, encontrou contudo uma má madrasta pelo caminho, a oposição da Universidade parisiense, a Sorbonne, naquela época dominada pelos teólogos, uma «caverna de bandidos», reduto de alguns fanáticos da escolástica, «formados no ódio às boas letras e à tranquilidade pública», inimigos constantes da livre investigação e divulgação do ensinamento de Cristo e, portanto, de Erasmo, sendo os principais nos «furores», Noël Béda, o chefe da censura durante quinze anos, e Pierre Cousturier (ou Sutor), retratados ironicamente por Erasmo nos colóquios Sínodo dos gramáticos e Refeição de peixe. Como já tinham encontrado mais de cem proposições condenáveis no
seu Novo Testamento anotado e nas Paráfrases aos Evangelhos(nomeadamente,
o querer traduzir as santas Escrituras em todas as línguas...), também teria de ser atalhada ou dificultada a nova incursão de Erasmo na messe do Senhor, baseada num ardente sentido de justiça e de piedade e num rigor da exegese filológica e conceptual dos textos sagrados, ensinando todos os cristãos a orarem de modo sábio, consciente e livre, e apelando, justificadamente, a tornarem-se mesmo profetas e sacerdotes pelo ungimento do Espírito e, portanto, verdadeiros adoradores de Deus em espírito e em verdade. Em 1526 e 1527 surgem as primeiras censuras parisienses, às quais Erasmo responde, quer justificando-se quer demonstrando a ignorância ou o facciosismo de Sutor e Béda. Em Valladolid, em 1527, reúne-se mesmo uma assembleia de teólogos convocados pelo benigno Inquisidor Geral Alonso Manriques para debaterem essas proposições ou doutrinas duvidosas, encontradas, segundo alguns frades e teólogos, tanto no Novo Testamento como no Modo de Orar a Deus, encontro que descreveremos mais à frente. Regressado a Paris, um desses opositores de Erasmo, o teólogo “sorbónico” Diogo de Gouveia, escreverá algo arrogantemente ao rei D. João III em Setembro de 1527, dizendo que se «deram a visitar os
outros livros a saber anotações, enchiridion, de modo orandi» e que se preparam para o condenar e que não sairá vencedor: «será melhor que não escrevera em outra coisa senão em histórias e crónicas de príncipes»... Em França, morto já Erasmo, nos primeiros catálogos de livros proibidos pela Sorbonne, de 1543, 1544 e 1551, estava incluído o piedoso Modus orandi Deum. Mas em 1547, no primeiro rol português dos livros defesos ou proibidos, reproduzindo o que a Universidade de Lovaina acabara de fazer (no ano em que, ao contrário, na Inglaterra as Paráfrases aos Evangelhos se tornavam obrigatórias, com a Bíblia, para todos os sacerdotes e paróquias), só eram indicados o Elogio da Loucura, o Modo de confessar e os Colóquios, tendo estes até sido publicados, em 1546, com as aprovações de vários professores e teólogos da universidade conimbricense, numa edição escolar (de que se conhecem hoje só dois exemplares) da autoria do erasmiano Juan Fernandez, professor de retórica na mesma Universidade, que a realizara com suma mestria ao conciliar cortes de censura, explicações amenizadoras e a tradução integral de vários colóquios, com as ideias e críticas de Erasmo, então já considerado autor perigoso e danado.

Todavia, em 1557, no segundo rol, entre as treze obras de Erasmo visadas (de novo baseado no de Lovaina mas com acrescentos portugueses), já aparecia o Modus orandi Deum, em latim e em vulgar, pois em 1546, na tipografia sevilhana de Andrés de Burgos, saíra o Tratado de la oracion y forma que todo christiano deve seguir, e que, dentro da permeabilidade do bilinguismo da época, terá circulado nos meios piedosos e cultos portugueses, justificando-se assim a sua drástica quão absurda proibição portuguesa. E no Index auctorum dannatae, impresso em Lisboa em 1624, condenam-se oito partes, algumas extensas, do Modus orandi Deum, segundo a versão inserida na Opera Omnia de 1540.

Passados quinhentos anos, certamente não há razões para proibições, antes pelo contrário, o valor religioso e cristão, para além de pedagógico, científico e espiritual de Erasmo, está mais do que reconhecido e, esta obra, na sua piedade (no sentido até greco-latino, onde significava o estar em boa relação com o divino) e simplicidade (mas também profundidade para quem a sondar e viver), em verdade entusiasma a alma e estimula à oração contínua, ao melhor conhecimento das letras divinas, bem como à fraternidade, ao amor e ao aprofundamento da oração, através mesmo dos santos e dos anjos, capazes de induzirem a consciencialização do espírito, a quietude contemplativa e a unificação íntima com Deus. Que ela seja acolhido por corações jubilosos por poderem beber na Fonte Divina, a que estas páginas tanto sabem e conduzem!

E se sentirmos alguma vez a expressão intercessora «Magister Erasme,
ora pro nobis, sive in nobis», Mestre Erasmo, ora por nós, ou em nós, ou
connosco, ela será a expressão do reconhecimento de um dos seres
humanos que mais conheceu, se aproximou e transmitiu o ensinamento e o espírito de Jesus, e do Logos.

Tradução anotada
Álvaro Pereira Mendes e Pedro Teixeira da Mota

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Impresso em 25/4/2024 às 19:52

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