Fundação Maitreya
 
À Procura do Rio Saraswati

de Kumud Mohan

em 25 Set 2010

  “ O último chá na Índia” dizia o aviso num café em ruínas à beira do trilho que subia a montanha. Não havia lá ninguém. Ficámos sentados numa rocha e continuámos depois o nosso passeio até à caverna de Vyas Muni – o mesmo Vyas que ficará eternamente na história da humanidade por ter sido o compilador do Mahābhārata, a grande poesia indiana.


Swarg AropanVyas tinha um problema: não conseguia concentrar-se com o barulho dum rio que passava lá perto. Rezou então intensamente à Mãe Sarawasti, deusa da sabedoria, implorando que se acalmasse e o ajudasse nas suas actividades criativas. Nesse mesmo instante o rio Sarawasti mudou o seu curso e enterrou-se, surgindo de novo num sítio (o sangam ou confluência em Allahabad) a centenas de quilómetros de distância, segundo a lenda...

A caverna sagrada de Vyas Muni nem atingia 30 metros quadrados. Num canto havia uma pedra redonda com alguns riscos antigos, descritos como “ inscrições com mais de 3000 anos” segundo o guia local. Oferecemos as nossas orações ao grande santo e caminhámos pelo trilho, rumo à catarata. Passámos por Bhim Pul, uma ponte de 6 metros de largura, por cima de uma enorme rocha. Segundo a lenda, Bhim (um dos cinco irmãos Pandava), com s sua lendária força, tinha tirado essa rocha do caminho dos irmãos Pandava enquanto iam para os céus. (Aliás, havia um pico coberto de neve nas vizinhanças conhecido como “swarg aropan” que quer dizer “escada para os céus”, e acredita-se que apenas Yudhishtir – o irmão mais velho, que era verdadeiramente honesto – conseguiu conquistá-lo).

Enquanto atravessámos o Bhim Pul, ficámos impressionados com a parede de rocha do profundo abismo à nossa frente. A face da rocha estava coberta com véus de nevoeiro transparentes por cima das plantas verdejantes. 30 metros mais à frente vimos um espectáculo inesquecível: ondas de água branca e cristalina surgiam da boca de uma caverna escura, que caíam a mais de 30 metros para formarem um poço turbulento com grandes rochas negras, antes de desaparecerem nas profundezas abaixo de nós. Não ousámos espreitar muito do nosso miradouro protegido, porque tinham-nos avisado que um fotógrafo tinha lá desaparecido havia uns anos, por tentar obter as melhores fotografias.

A catarata de Saraswati situa-se a 3300 metros acima do nível do mar, a cerca de 4 quilómetros do santuário sagrado de Bandrinath. É muito perto da fronteira entre a Índia e o Tibete. Será que o rio Saraswati é lendário porque se acredita ser a filha do próprio deus Brahma, o criador do mundo, que desceu do oceano celestial para purificar e fecundar a terra lá em baixo?
(Na antiga cultura ariana, caracterizada por uma sociedade agrícola estável, os rios – que alimentavam e enriqueciam a terra para que pudesse produzir comida e forragem- desempenhavam um papel importante nos ritos sagrados e por isso eram adorados como encarnações sagradas).

Por isso, o conceito original de Saraswati era uma divindade feminina das águas. Os Vedas descrevem-no como o supremo entre todos os rios, distinguido pela sua sublimidade e esplendor, a sua glória e majestade. Às vezes Saraswati é comparado a um oceano, “tão grande, tão poderoso e rápido que mete medo aos corações dos mortais”.

Em contraste, a imagem deificada de Saraswati evoca serenidade e ascetismo pela sua graça e dignidade. Segundo um shloka (verso) é a experiência de felicidade, a realização de todos os desejos e a alegria da alma. A palavra “Saraswati”, derivada do sânscrito, significa uma água pura e límpida, sempre em movimento, tal como a clareza da fala que deriva de pensamentos graciosos.

Com uma posição única e solitária entre as divindades femininas por personificar o aperfeiçoamento espiritual, Saraswati é adorada por Brahma,Vishnu, e Mahesh (o Criador, Conservador e Destruidor), tal como por várias outras divindades do panteão hindu. Acredita-se que foi Saraswati que inventou a primeira língua, sânscrito, para a humanidade, juntamente com a caligrafia, Devanagari, na qual a língua é escrita. Saraswati está presente onde existe cultura humana. Representando a peculiar habilidade humana de raciocínio, que distingue os humanos de todas as outras criaturas e possibilita um domínio sobre os outros seres, inspirando e personificando as artes e as ciências, Saraswati simboliza a grandeza da civilizBhim Pulação humana em toda a sua diversidade e riqueza.
Depois da época védica, a importância de Saraswati como rio, foi ultrapassada pela sua imagem como Deusa da língua, literatura, sabedoria, cultura, aprendizagem e eloquência. Os hinos descrevem-se como a inspiração de todas as canções agradáveis e pensamentos pios.

No período clássico, Saraswati transformou-se na essência e epítome do pensamento e cultura hindus. É descrita como Vagdevi,Vageshwari (a deusa da fala), Sharada (quem mora nas neves), Gyanashkati (o poder do conhecimento), Vidyadaani (que confere a educação), Buddishaktisvarupini, Kalpanashakti, Pratibha e Smritishakti (personificações dos poderes do intelecto, imaginação, inteligência e memória), tal como Vedagarbha (o útero ou fonte dos Vedas), Sarvavidyarupini (personificação de todas as formas de educação) e Sarvashastravasini ( que mora nos livros). Invocam-se as bênçãos de Saraswati quando as crianças começam a sua educação. Particularmente no dia de Basant Panchami, o primeiro dia da primavera, todos os estudantes das ciências de belas artes entusiasticamente adoram Saraswati juntamente com os seus livros, canetas, instrumentos musicais e todo o material escolar.

As esculturas em pedra da Deusa Saraswati a partir do período medieval, representam-na com quatro braços, com caneta e livro (conhecimento e intelecto) um rosário (ascetismo) e um vaso de néctar (a fonte de bênçãos). Vestida com trajes brancos e brilhantes, a linda Saraswati montada no seu veículo divino, um cisne, sugere uma dimensão de existência que transcende o mundo físico humano. Para descontrair, toca o veena, o progenitor de todos os instrumentos musicais, sentada sobre um lótus que significa a pureza, aspiração divina e a eterna beleza e frescura da Criação – elevando-a acima das imperfeições do mundo. O lema do verdadeiro devoto de Saraswati tem de ser o de sempre se esforçar para atingir o inatingível.

E pode-se encontrar os seus devotos em todos os sítios onde os fiéis e a cultura indiana têm deixado os seus traços: seja o budismo, o jainismo ou o shaivismo. Uma lindíssima imagem pintada de Saraswati com características faciais europeias tem o lugar de honra no mosteiro de Aginsky na Sibéria. Há 30 anos, raga Saraswati, uma amálgama de ragas que lembram a força, segurança e serenidade sentidas pelos seus devotos abençoados, juntamente com a beleza extraordinária da sua catarata branca, foi composto em homenagem a Saraswati. No meio de todas essas imagens, o que é que aconteceu exactamente a Saraswati, o rio?

Segundo uma análise dos dados antigos disponíveis, um poderoso rio que nascia no seio do Himālaya e percorria o deserto ocidental, existia mesmo nos tempos védicos. Algum tempo depois, mudanças cataclísmicas obrigaram o rio a passar por debaixo da terra. Interpretações modernas das imagens de satélite tiradas pelo Bhaba Atomic Center, revelaram cursos subterrâneos do rio Saraswati entre o nordeste e o sudoeste do estado do Rajastão. O estudo demonstra que a área pela qual o curso do rio foi traçado, tem vegetação durante todo o ano, mesmo quando há pouca ou nenhuma pluviosidade.

Também há provas arqueológicas que sugerem a existência de povoações planeadas e fortificadas numa área de 1200 quilómetros ao longo da bacia do rio Saraswati. Até hoje, já foram descobertos 300 locais desenvolvidos, alguns dos quais verdadeiras cidades com complexos sistemas para gerir a água. Acredita-se que, entre 3500 a.C. a 1500 a.C., floresceu nessa região uma cultura muito desenvolvida. Recentemente houve novas esperanças quando um rio de água doce, de 100 quilómetros de comprimento e 80 metros de largura, apareceu na superfície da região de salina do Rann de Kutch, depois de um terramoto devastador de abalou Bhuj em Guzerate em 26 de Janeiro de 2001. A energia libertada por esse movimento tectónico na altura, foi equivalente a 224 bombas de hidrogénio, segundo um cientista do Instituto Nacional de Pesquisa Geofísica em Hyderabad. Embora a ciência não tenha ainda conseguido chegar a conclusão satisfatória sobre a antiguidade da água, os devotos gostam de pensar que o Supremo Rio, a Deusa Saraswati voltou à terra para beneficiar e confortar a humanidade.

Cortesia da Revista India Perspectives
   


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