Fundação Maitreya
 
Tudong Irlandês - 2ª Parte

de Bhikkhu Appamado

em 03 Abr 2012

  A ideia inicial desta caminhada foi, como já havia referido, de Alex. Este caminho foi não só uma peregrinação com os monges mas também uma investigação pessoal, realizada pelo próprio. Assim, após a primeira parte da jornada, que culminou no Centro de Retiros Sunyata, eu e o Samanera Thanavaro voltámos para Inglaterra. Uma das razões do nosso regresso tinha a ver com o facto de Luang Por Liam e Luang Por Anek estarem a visitar Amaravati (o mosteiro onde actualmente residimos) durante este período. Sendo Luang Por Liam o sucessor de Luang Por Chah, esta era uma oportunidade única de conhecer e estar na presença deste mestre de meditação, que tanta gente tem inspirado.

Antes de iniciar o diário da jornada convém explicar porque foi este artigo dividido em duas partes.
Assim, Alex continuou a sua busca interior, caminhando sozinho até ao meu regresso, cerca de doze dias depois. O curioso é que, apesar de inicialmente esta ser a caminhada de Alex, a dada altura passou a ser a caminhada de todos aqueles que participaram e usufruíram do evento, de uma forma muito mais global do que aquela que teria sido a ventura solitária do indivíduo.

Desta forma, retorno à Irlanda, desta vez sozinho enquanto monástico, e encontro-me novamente com Alex, Nick Scott e com um novo companheiro de viagem: Rori. A primeira noite foi passada em casa de Rori, biólogo especializado em plantas de alta montanha, que vive com sua mãe e dois dos seus três irmãos numa casa tão pitoresca que só talvez nos contos de fadas algo se lhe iguale. Desde as brilhantes pinturas místicas do irmão pintor, ao maravilhoso terreno cultivado (com princípios de Permacultura) pela mãe jardineira, passando pelo coelho 'gigante' que vivia na casa, eu não estava muito certo em que mundo me encontrava!

Planos estabelecidos partimos em direcção às montanhas Kerry, onde se encontra o ponto mais alto da Irlanda. A primeira noite é passada à beira de um lago que se situa já a elevada altitude. As rajadas de vento são tão fortes, a humidade do ar tão densa e a chuva tão incessante que a minha noite é passada quase toda em vigília. A lona da tenda bate-me na cara (dos dois lados!) a noite toda, levantando-se e deixando a água entrar 'à vontade'. Após as primeiras horas de frustração e de cansaço entro num estado de enorme paz. Assim que se dá o momento da aceitação perante uma condição que não posso alterar, a minha consciência torna-se pacífica, una, como que em outro plano, onde a realidade que vigora deixa a realidade da chuva e do vento muito à margem. Este tipo de aceitação traduz-se numa expansão de consciência que, por vezes, só em situações mais adversas permitimos que aconteça.

Na manhã seguinte, completamente gelados, reiniciámos caminhada. Encontrávamo-nos no interior de uma nuvem! Não víamos absolutamente nada, sem ser dois passos (às vezes se tanto) ao nosso redor. Sem o mínimo sentido para onde nos estávamos a dirigir, estávamos à mercê de Rori que, para nossa salvação, é um conhecedor exímio destas montanhas, visto ter passado muitos dias (e noites) a percorrê-las, efectuando os seus estudos de plantas de alta montanha! Sem ele não teríamos conseguido.

Toda a paisagem era igual, nada se via ou se ouvia sem ser o vento e os passos. Tudo era cinzento, dentro da nuvem, até mesmo as pedras debaixo de nossos pés não apresentavam grandes variantes de gradiente. Nada puxava a nossa atenção para o exterior; estávamos 'internalizados' na nuvem. A dada altura tínhamos que parar para comer visto só o podermos fazer até ao meio-dia (as pessoas que acompanham o monge nestas caminhadas encontram-se nos oito preceitos pelo que também elas se coíbem de comer depois das doze horas).

Quando me sentei reparei como estava gelado e como os meus movimentos encontravam-se trôpegos. Quando observei mais cuidadosamente, reparei que também os pensamentos na mente encontravam-se num estado latente, sem muito movimento. Notei o mesmo em relação às funções dos meus órgãos, estavam a ficar como que adormecidos. Por um momento pensei em não comer e simplesmente deitar-me no chão. Alerta! Num vislumbre de clareza consegui reagir, identificando o que estava a acontecer: um princípio de hipotermia (já me havia acontecido há muitos anos atrás quando tinha decidido tomar banho numa piscina, ao ar livre, no dia de ano novo!). De imediato pedi a Alex para dar-me o 'saco de salvamento', enfiei-me dentro dele e consegui aquecer, comer e prosseguir viagem.

Momentos depois chegámos ao ponto mais alto da Irlanda onde pela primeira vez no dia vimos ... o céu! Que azul, que lindo, que alegria. Tratava-se apenas de um 'quadrado de céu' pontualmente no meio das nuvens, mas era tudo.
Algumas centenas de metros à frente, o tio de Alex (montanhista experiente que já havia percorrido os Himalaias várias vezes) esperava-nos, trazendo consigo o seu cão e outro que havia encontrado perdido na montanha. Já a mais do meio da descida encontrámos a dona (do cão perdido) que ficou radiante por reaver o seu fiel amigo (e vice-versa).

Os três dias seguintes foram passados a percorrer as montanhas Kerry. Quanto mais os dias passavam, quanto mais embrenhados nas montanhas nos encontrávamos, quanto mais a civilização ficava para trás, mais intemporal a nossa experiência se tornava. É como ter contacto com a nossa energia primeva, tocar no ponto em que a nossa humanidade se toca com o que está para além e antes dela, anterior ao seu início. As nossas origens, as nossas razões de existência, a demanda da humanidade no mundo desde os primórdios dos tempos, a nossa história de sobrevivência, de busca, de libertação. Tudo isto se torna parte da nossa experiência. Vivemos imbuídos nestas questões que se vão desvelando a cada passo do caminho. É como se tivéssemos a andar no nosso interior, em direcção a um centro que não tem lugar na dimensão espacial.

A dada altura ficámos sem água pelo que eu e Alex tivemos de, pacientemente, recolher gotas que escorriam pelo musgo de uma encosta. Levou-nos cerca de quarenta minutos para encher três garrafas. É assim que se dá valor a algo que normalmente tomamos como 'direito adquirido'. Nessa noite, cada gota desperdiçada não passava despercebida. Entretanto, 'cá fora', havia chegado a altura de deixar a montanha e voltar às planícies, pois tínhamos de alcançar a costa de maneira a apanhar um barco para Valencia Island. Já na planície 'trocámos' o Rori pelo Padraig, que veio ter connosco com um muito bem-vindo piquenique.

A última noite antes de irmos para a ilha foi passada a acampar junto ao mar. Eu e Alex estávamos inspirados e ficámos embrulhados nos sacos cama a fazer meditação sob as estrelas até quase à meia-noite. Estava muito frio e vento, mas o bater das ondas era doce e suave, enrolava-nos nas suas curvas e levava a nossa mente para lá do fundo do mar, para um tempo antes do tempo.
Valencia Island é uma ilha viçosa, com uma atmosfera especial. Tem algo de sagrado, de resguardado e de misterioso. É como se ali houvesse um segredo guardado! Percorremos grande parte da ilha a pé. Pela primeira vez avistámos o destino final da viagem, os Skeligs, pequenas ilhas que foram outrora habitat de monges cristãos. Acampados para a noite, fizemos chá e descansámos. No dia seguinte descobrimos que havíamos acampado no local onde pela primeira vez se fizera a ligação com sucesso dos cabos de telégrafo entre a Europa e a América, em 1866. Imagine-se, cabos que atravessam o Oceano Atlântico!

De seguida fomos até Portmagee onde apanhamos o barco para os Skeligs. Entretanto juntaram-se a nós Mich, os pais e a irmã de Alex, a mãe e um dos irmãos de Rori, perfazendo um total de 11 pessoas no grupo. A viagem de barco foi uma aventura. As ondas galgavam a proa. Todos os passageiros estavam vestidos com oleados, mas completamente encharcados. Já não sentíamos a chuva: tudo era água.

Chegados aos Skeligs a atmosfera austera da ilha e as construções monásticas não deixam ninguém indiferente. Foi com muita bravura e fé em Deus que estes homens ali se sediaram, longe da terra mãe, ligados apenas por um pequeno barco que 'quiçá' alguns dias por ano podia fazer a travessia. A vegetação da ilha é muito rasteira. As encostas muito escarpadas. Cultivar algo seria muito difícil dados os ventos fustigantes e o ambiente extremamente marinho (salgado). A ilha é invadida por papagaios do mar e muitas outras aves marinhas. Existe também uma simpática colónia de focas. Foi assim o culminar de uma peregrinação. Para mim, uma expansão. Para Alex um grande revelar da sua própria verdade, e decerto cada um dos participantes teve a sua experiência na medida da sua entrega.

Finda a viagem fiquei alguns dias em retiro em casa de Nick e Mich, melhor dizendo, na casa ao lado que consiste num espaço para retiros e meditação, onde todas as quintas-feiras um simpático e dedicado grupo se junta para comungar do silêncio. Estes dias viriam a ser para mim uns dos melhores da minha vida. Após a viagem, com o coração aberto e a mente mais desimpedida de obstáculos, estes foram dias de interiorização, de meditação e de silêncio, que me proporcionaram uma observação interior e uma integração dos acontecimentos dos dias anteriores, sem ter de voltar bruscamente para uma civilização onde a ênfase encontra-se tão distante da origem da sua própria existência.

Foram dias preciosos. Por mim e pela oportunidade que foi criada a todos aqueles que participaram desta ventura aqui fica o meu profundo agradecimento a todos os que a tornaram possível.
Anumodana
   


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