Fundação Maitreya
 
Yoga Vāsiṣṭha -2ª Palestra

de Alejandro Corniero

em 27 Mai 2012

  Nestes extractos seleccionados que estamos a apresentar por capítulos encontram-se ensinamentos do Yoga tradicionais como são ensinados e postos em prática pelas mais altas autoridades espirituais da Índia. Trata-se de uma jóia de espiritualidade e sabedoria que apresenta as noções fundamentais do Vedānta numa forma mais exequível do que os tratados de estilo mais filosófico, sem perder, contudo, o que tem de elevado e de profundo. Os sábios antigos eram da opinião de que, quem estuda com atenção esta obra, e vive os seus ensinamentos, se eleva acima das limitações da matéria e, experimentando uma beatitude imutável no seu ser, leva os seus semelhantes a participar da sua própria exaltação espiritual, através da bondade e da verdadeira filantropia.


O Yoga Vāsiṣṭha de Vālmīki

Quando a música anunciou a chegada de um novo amanhecer, Rāma, juntamente com seu pai, o rei, e seus irmãos, voltou à assembleia.

O bem-aventurado Vasiṣṭha disse:
«Ó Rāma-ji, fica a saber que este mundo é uma contínua ilusão alimentada pelos homens de natureza apaixonada ou indolente 1: são eles quem mantém este edifício irreal, da mesma forma que os pilares escoram uma construção.

O homem inteligente deve observar os fenómenos do mundo e, discernindo neles o que é real e o que é irreal, aferrar-se exclusivamente à realidade.

É a alma que cria o mundo e o desdobra na sua própria imaginação. O melhor meio de preservar a alma da ilusão é, antes de tudo, conhecer os elementos desta sabedoria sagrada; depois, a prática do humor estável, e por último, relacionar-se com os homens bons, conduzindo o espírito para a pureza.

A alma penetrada de santidade e de humildade deve recorrer a mestres de Yoga que contém com a nossa bênção, e que sejam versados em filosofia. Graças aos seus ensinamentos, a alma chega a perceber, pelas suas meditações, a presença de Deus dentro de si; e vê o universo abrir-se perante si como claros raios de lua.

O Espírito Divino é imperecível e, quando se tiver dado a conhecer à alma humana, permanece até à última gota de erro.

Ó homens, desconhecendo o Espírito divino, Brahman, não fazeis mais que submeter as vossas almas ao sofrimento; e, por outro lado, conhecendo Brahman, alcançareis a felicidade eterna e a serenidade.

Ó Rāma-ji, fica a saber que o Espírito se vê tão pouco manchado com o seu vestido exterior, como o céu com as nuvens de pó. Por extensos que sejam, todos os fenómenos do mundo que percebemos à nossa volta, não são mais do que as ondas do oceano ilimitado do Espírito divino.

Meditando interiormente no Espírito supremo 2 e contemplando a luz da tua pura buddhi, submergirás na glória de Brahman.

Sê tolerante, calmo e equânime; mantém-te ponderado, reservado nas palavras e doce na tua alma, e sê como uma jóia preciosa que brilha com a sua luz interior. Tu te verás, assim, liberto da agitação febril desta vida mundana.

Liberta-te do hábito dos desejos e limpa dos olhos a maquilhagem dos afectos ilusórios. Deixa que a tua alma satisfeita repouse no teu Ātman e se libere das obsessivas inquietudes deste mundo.

Conhecendo a irrealidade do mundo, nenhum homem com sabedoria se deixa enganar pelos seus cenários sempre cambiantes.
O mestre espiritual é quem, com a justeza da sua argumentação, desperta a alma indolente e adormecida, e quem, pela continuação, instila nela a palavra da verdade.

Os homens de intenção pura, primeiro servindo com diligência aos bons e compassivos gurus 3 depois, graças ao entendimento, alcançam a luz da Verdade percebida como resplendor divino em suas almas. Chegam a ser como eu, ó Rāma-ji.»

E Rāma perguntou:
«Diz-me, ó Sábio de alma elevada, como pode a creação proceder do supremo Brahman, de quem disseste estar imóvel no vazio?»

Respondeu Vasiṣṭha:
«Ó príncipe, a natureza de Brahman é de tal modo que todo o poder procede incessantemente d’Ele: por isso se diz que todo o poder reside n’Ele. N’Ele estão a entidade e a não-entidade; n’Ele também estão a unidade, a dualidade e a pluralidade, assim como o princípio e o fim de todas as coisas.»

Disse Rāma:
«Venerado Senhor, as tuas palavras são muito obscuras e não consigo compreender o que dizes. Tudo que é produzido por algo é invariavelmente da mesma natureza do seu produtor: a luz é produzida pela luz, o trigo pelo trigo, e o homem nasce do homem. Logo, o creado pelo Espírito imutável deve ser igualmente invariável e de natureza espiritual. Por outro lado, o Espírito inteligente de Deus é puro e imaculado, enquanto a creação é impura e feita de matéria grosseira.»

Ao escutar estas palavras o grande Sábio disse:
«Rāma-ji, Brahman é todo pureza e n’Ele não há qualquer impureza: as ondas que se movem na superfície podem ser fétidas, mas não contaminam as águas profundas.»

Respondeu Rāma:
«Senhor, Brahman está isento de sofrimento, enquanto o mundo está cheio dele. Por isso não te compreendo quando dizes que este é um produto daquele.»
Perante estas palavras, o grande Sábio Vasiṣṭha guardou silêncio. Fez para si próprio a seguinte reflexão:

Não é culpa do homem instruído duvidar de algo enquanto não lhe tenha sido explicado de maneira satisfatória, como é o caso do príncipe Rāma. Mas o homem meio instruído não está apto para receber um ensinamento espiritual, já que a sua visão do mundo visível, circunscrita aos objectos imediatos, demonstra a causa da sua perdição.

Quem chega a contemplar a luz transcendente e vislumbra com clareza as verdades espirituais, não sente o desejo dos prazeres sensoriais; com o tempo, chega à conclusão de que Brahman é tudo no todo.

O discípulo deve primeiro estar preparado e purificado pela meditação, pela piedade e pela prática do Yoga, assim como pelo exercício quotidiano da calma e do autocontrole, e só então se irá iniciando lentamente na convicção de que Kham Brahman 4.

Então Vasiṣṭha disse:
«Dir-te-ei Rāma, no fim destas palestras, se o descartar dos corpos grosseiros pode, ou não, ser atribuído a Brahman. De momento, sabe que Brahman é omnipotente, que tudo penetra e que Ele é todo Ele mesmo, da mesma forma que os mágicos, mediante diversas práticas, produzem á nossa frente numerosas coisas que são aparências irreais.

Tudo quanto é produzido, qualquer que seja a forma, em qualquer tempo e em qualquer lugar, não é senão uma variação da Única Realidade que existe por Si própria. Por conseguinte, ó Rāma, deverias maravilhar-te perante cada mudança acontecida no tempo e no espaço, que está pleno do Espírito de Deus e ilustra o aspecto ilimitado do Infinito.

A alma daquele que em tudo vê a Deus e permanece firme de carácter já não tem razão para flutuar segundo as variações da natureza, ou as vicissitudes da fortuna. O Senhor manifesta os poderes que n’Ele residem, como o mar manifesta as ondas sem sair de si mesmo.

A alma que é testemunho das verdades espirituais e se estabelece em perfeita equanimidade sem ser afectada pelos acidentes exteriores, alcança o discernimento de que a luz da Verdade reside nela.

Quando há uma lâmpada, também há luz; o sol radiante traz consigo o dia; onde há uma flor também há perfume; assim, ali onde está o Espírito vivo, está lá o conhecimento do mundo.
O mundo que aparece à sua volta é como a luz de Ātman. As almas dos homens estão dotadas deste conhecimento desde que nascem. Depois, à medida que crescem, abrem-se, no decurso do tempo, à forma deste amplo bosque que é o mundo.

Sabe, ó Rāma-ji, que ainda que, a falar de tal, se diga correntemente: ”Tudo é creado por, ou vem de Deus”, na realidade, no sentido espiritual, não é assim. Nenhuma mudança, nenhuma separação, nem nenhuma relação de espaço ou de tempo, tem que ver com o Supremo, que é imutável, infinito e eterno; nem qualquer aparição ou desaparecimento Lhe dizem respeito.
A alma, pelo facto de ter nascido d’Ele, dispõe tanto do poder, quanto da inteligência de Seu intelecto, e, se se aplicar com ardor, alcança a meta a que se propôs.

Dizer que a chama de um fogo é produto de outra chama é um sofisma, e uma asserção assim não contém a verdade. Não se trata de um resultado, mas é antes, a mesma coisa.
Pretender que um é o produtor do outro é igualmente falso, dado que o único Brahman não pode, sendo infinito, produzir algo que não Ele mesmo.

Brahman é o intelecto (buddhi). Brahman é a alma (manas). É a inteligência (chit). O universo inteiro é Brahman, e contudo, Ele está para além disso tudo. Na realidade, o mundo é uma não-entidade, já que tudo é unicamente Brahman.
Nada pode ser provado como absolutamente certo para lá da existência de Brahman, e a santa Śruti 5 declara:” Verdadeiramente, tudo é Brahman.”

Nas minhas últimas palestras, ó Rāma, alargar-me-ei por completo sobre este tema; a tua alma terá de progredir mais, antes que possas compreendê-lo.
Como uma arma se esquiva de outra, e uma forma de impureza pode ser apagada por outra 6, como um veneno se anula com outro, assim a abolição de um conhecimento erróneo por outro superior traz alegria à alma.
A existência do mundo depende, na verdade, da existência do supremo Brahman; sabe-o e não te questiones como, ou donde proveio a existência.
Domina os teus desejos, ó Rāma, e pratica a renúncia e o desapego. Serve a todos os seres vivos; escuta os ensinamentos e sê simples de espírito.

Não te pareças com aqueles que, presos na centuplicada armadilha dos vãos desejos, e submetendo-se às múltiplas formas de suas ânsias, passam de um corpo para outro, de encarnação em encarnação, como os pássaros voam de uma árvore para pousarem noutra.
Tenta desfazer-te de todo o desejo terreno, ó Rāma, e consagra o teu coração ao santo Yoga.»

Notas
1. A alma e o corpo físico, como o resto da creação, participam nas três qualidades constitutivas da Natureza (prakṛtī). Assim, a natureza da “personalidade” de todo o ser humano está determinada pelo predomínio destas três qualidades (guṇas). Vide nota 6. 1ª Palestra-

2. Assinalemos que Ātman, o princípio eterno, ou o Eu do ser humano, e Brahman, o Ser puro, o Absolutamente Incondicionado, são na realidade um e idênticos: a alma individualizada (Jīva) imagina erroneamente, sob os efeitos da ignorância (avidyā), que existe uma diferença entre ambos.

3. Instrutor tradicional, ou mestre de Yoga.

4. “Tudo é Deus” (porque toda a diferença, toda a creação é somente fenoménica, não real.)

5. Literalmente, “ o que foi revelado”. Os Vedas e as demais Escrituras que são autoridade, onde existem as Verdades espiritualmente reveladas aos videntes dos tempos antigos, são conhecidos no seu conjunto como Śruti.

6. Talvez esta frase se trate de uma alusão à noz kataka, exemplo citado já pelo filósofo Sri Shankarāchārya. Quando se sacode uma das suas sementes num jarro de água, tem o poder de precipitar no fundo todas as partículas de lodo e pó, devolvendo, assim, à água toda a sua pureza.
   


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Impresso em 19/4/2024 às 14:52

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