Fundação Maitreya
 
Antero de Quental

de Pedro Teixeira da Mota

em 18 Mai 2014

  Santo Antero, como foi chamado, nomeadamente por Eça de Queirós no seu contributo para o In-Memoriam, intitulado "Um génio que era um santo" (embora a expressão tivesse surgido primeiro na Ermelinda, mulher de um seu amigo, pelo modo como Antero tratava as crianças), foi um deles, e atravessou a vida com a ardência e a sinceridade dum idealista do amor e da justiça, da verdade e da universalidade mas, minado por problemas de saúde e com o decorrer da vida sem os meios e pessoas que o harmonizassem e com ele se entretecessem, foi-se isolando ora verticalmente nos seus voos metafísicos ora horizontalmente nos seus abatimentos e incapacidades. Com a sua morte auto-imposta, necessariamente ainda mais se destacou, ora alto e santificado por uns, ora baixo, incompreendido e denegrido por outros.Alguns seres que vivem entre a solidão metafísica, a demanda ardente da verdade e a comunhão da amizade, carregam tão marcadamente a individualidade e a estrutura psico-física sensível que, ainda que caminhem liderando ou acamaradando, acabam por ter de reconhecer-se na sua unidade solitária e partem então, por vezes, abruptamente...(Nova versão de 3/2014).


Antero de Quental, um dos mestres de Portugal do séc. XIX.

Nascera em 18 de Abril de 1842, em S. Miguel, Açores, de família com tradições religiosas e poéticas marcadas, tal o padre Bartolomeu Quental, famoso escritor. A mãe, Ana Guilhermina de Maia Quental, era muito religiosa ou piedosa, mas com certa tristeza marcada até, e foi por ela e pelo seu pai Fernando de Quental, algo duro e com quem Antero nunca teve uma relação especial, educado segundo os princípios da moral cristã, que sempre o acompanhariam, ou que já até trazia consigo, ainda que com repúdios violentos, lutas dilacerantes e transmutações importantes...
Um dos padrinhos do baptismo foi o seu tio Filipe de Quental, que o acolherá mais tarde em Coimbra, e receberá ainda o magistério de Castilho, na tenra idade de cinco anos, ao aprender francês com ele e ao frequentar a escola particular Liceu Açoriano. Em 1852 vem para Lisboa para estudar no Colégio Particular mas como ele fecha após alguns meses, por emigração de Castilho, regressa aos Açores, concluindo em Julho de 1855 a instrução primária e regressando ao continente em Outubro de 1855.

Seguirá finalmente para Coimbra, para o Colégio de S. Bento, onde o seu tio Fernando era professor, em 1856, para fazer os preparatórios para a Universidade, matriculando-se em Direito em Setembro de 1858.
Cedo o seu génio poético e revolucionário, filósofo e moralista brilha, tanto criativa como constestariamente: em 1859 publica os seus primeiros poemas, em Outubro é condenado a oito dias de prisão, ficando preso apenas três dias, por desrespeito às praxes e leis Académicas, e em 1860 funda e dirige com Alberto Teles e Alberto Sampaio o jornal "O Académico", seguindo-se depois uma série deles como "O Cisne do Mondego", "Estreia Literária", o "Fósforo", "Grémio Alentejano", "Prelúdios Literários", "O Tira-Teimas", etc., talvez não apenas numa exuberância criativa literária mas também numa matutada educação liberal e revolucionária...
Em 1861 é fundada por José da Cunha Sampaio (que não fora apenas condenado a uns dias de prisão mas expulso por dois anos da Universidade), Antero de Quental e outros estudantes uma associação secreta, a Sociedade do Raio, com o fim de destruir (como um raio) o despotismo universitário, o que era obsoleto em comportamentos e ideias, fazendo-se a partir dela, além das cerimónias de iniciação, com os seus juramentos, e discursos, alguns actos ousados, tais como o impedimento de uma récita "em benefício de um partido retrógrado e liberal, mas astucioso", o alvorotamento dos "ânimos de toda a sociedade e mostrámos que o aniversário das instituições liberais era ainda festejado pela mocidade", o impedimento que "a Academia fosse debaixo das janelas do seu pior inimigo, saudá-lo com música, dar vivas a um Reitor, de cuja mão temos recebido mil ultrajes", ou que, "em outras duas ocasiões, provocámos explosões de entusiasmo e saudações à palavra e ideia santa de independência e liberdade, que mostraram ao país que não estávamos mortos e, aos nossos inimigos, que não sofríamos o jugo boamente"...

Antero destaca-se então, como vimos pela transcrição do documento secreto apresentado à reunião magna da Sociedade do Raio como líder (ou "condottieri", no dizer do seu amigo Raymundo Capela) dos estudantes dinamizando ainda evacuação por todos os estudantes da Sala dos Capelos, quando o reitor Basílio Alberto de Sousa Pinto ia iniciar o seu discurso, em 1862, talvez o acto mais espectacular, e em 1864 a saída dos estudantes até ao Porto em protesto contra o mesmo Reitor, mas já com bastante menos adesão...
É um dos grandes poetas nocturnos da boémia coimbrã e interessa-se não só pelo pensamento moderno francesa de Michelet, Quinet ed Proudhon, ou a filosofia germânica, de Hegel, Kant e Hartman, como também pelas literaturas e religiões Orientais, em especial as Persas e Indianas, tal como nos conta Eça de Queiroz: "Conhecer os princípios das civilizações primitivas constituía então, em Coimbra, um distintivo da superioridade e elegância intelectual. Os Vedas, o Mahabharata, o Zend-Avestha, os Niebelungen eram os livros sobre que nos precipitávamos com a gula tumultuosa da mocidade que devora..."
Os seus primeiros versos são românticos, de Amor, mas onde espelha já a idealidade não carnal, a presença poderosa do arquétipo maternal e até mesmo a Morte, e junta-os na “Beatrice”, publicada em 1863, no qual as poesias são dedicados a sucessivos amores, alguns muito angelizados, outros em que palpita a totalidade do seu ser, de carne e espírito, resultando ainda desse período as "Primaveras Românticas".

Como dissemos vários dos poemas são dedicados a mulheres, noutros casos a seres apenas entrevistos ou então meramente contemplados na imaginação e epifanias da Ideia, da Morte, do Amor. Reais serão assim a M. C., a Beatrice, que morre cedo e abala bastante Antero, Maria (a "Pequenina", que vivia em Tomar, mais nova que o poeta e que casará com um amigo dele), e Pepa, esta, uma andaluza, a que desperta sentimentos mais intensos a todos os níveis, bem expressos nestes versos:
"Dá-me, pois, olhos e lábios,
Dá-me os seios, dá-me os braços,
Dá-me a garganta de lírio,
Dá-me beijos, dá-me abraços."
Mas cedo essa fase adolescente poética amorosa desaguará no mais amplo campo dos ideais revolucionários e fraternos e será em 1865, com as "Odes Modernas", que transmite ou manifesta publicamente as suas ideias e visões de justiça, socialismo e liberdade em poesias de estruturas diversificadas mas todas unidas sob o mesmo firmamento filosófico e social, conseguindo um certo impacto, como regista por exemplo Cândido Figueiredo, nos seus" Homens e Letras, Galeria de poetas Contemporâneos: "Os noticiaristas, os poetas, os dramáticos, os folhetinistas que seguiam todos placidamente o seu caminho, paravam de súbito, como se lhes rebentasse aos pés uma bomba de dinamite"

Nesse mesmo ano, e publicado em Janeiro, sai no jornal "O Século XXI" de Penafiel, o seu ensaio crítico "A Bíblia da Humanidade, de Michelet", autor que muito o inspirava então, iniciado assim: "Dentro do homem existe um Deus desconhecido: não sei qual, mas existe - dizia Sócrates soletrando com os olhos da razão, à luz serena do céu da Grécia, o problema do destino humano. E Cristo com os olhos da fé lia no horizonte anuviado das visões de profeta esta outra palavra de consolação - dentro do homem está o reino dos céus". Nesse ensaio defende que somos todos irmãos, que dentro homem está Deus, a unidade dos corações é a verdadeira cidade de Deus, a consciência da nobreza do destino do homem, a revelação da sua mesma divindade, que a alma da humanidade está em cada homem e na humanidade a alma inteira do mundo, que o Deus da Humanidade é o mesmo homem e o seu ideal a religião da Vida, sendo o seu templo o mundo e a Vida, a sua revelação...
Nesse mesmo ano de 1865 publicara em Janeiro uma muito irónica "Defesa da Carta Encíclica de Sua Santidade Pio IX contra a chamada opinião Liberal. Considerações sobre este document."que rapidamente teve duas edições e que por vezes não foi muito bem compreendida tão fina e inteligente é a sua ironia, na qual parecendo apoiar o Papa e a criticar os liberais cristãos acaba por estar a fazer uma tremenda defesa da razão, da liberdade, do livre-exame, da revolução, da ciência, pondo em causa todo o dogmatismo e autoritarismo da Igreja, aliada aos reis e Imperadores. Este pequeno opúsculo, escrito com 23 anos, é mais um sinal do génio precoce de Antero, uma obra-prima de ironia inteligente e desafio ao conservadorismo da Igreja Católica (ou a quaisquer dogmatismos e autoritarismos) e de aspiração ardente à Ciência, à Arte, à Informação Livre ou Opinião Pública esclarecida.

Dividida em sete capítulos, no último, aquele em que finalmente Antero abandona a subtil ironia e fala com o coração, idealismo puro e destemor, diz-nos: "Uma só lei: um só poder: uma só alma: uma só vida! Eis a ânsia da humanidade, há tantos séculos quantos um destino misterioso a faz errar à busca do desconhecido, sobre este duro e convulso chão da existência...
Lírio de amor! Unidade ideal! Sonho milenário de cada idade! Pois um Deus amigo e pio não nos dará que vejamos, uma hora enfim, o sorriso divino dessa fada dos sonhos de cada geração?... Que beijemos um dia a fímbria do véu puríssimo dessa madona da humanidade?
Oh! Existe um Deus justo em alguma parte, que acima destas contendas do mundo, deve ter julgado cumprida esta dolorosa provação! Existe, por certo. A Paz do Amor ver-se-á sobre a terra nas vestes da sua inocência. E a unidade absoluta dos homens, fundindo estes incompletos poderes, abraçando estes irmãos inimigos, temporal e espiritual, razão e sentimento, sobre o seio vastíssimo da grande, da única religião do futuro, reconciliará por uma vez o mundo consigo mesmo - lá quando do seio da humanidade brotar o lírio augusto da Unidade, e a eterna Paz, como perfume do seu cálice, embalsamar o universo inteiro..."
Trava nesse ano e no seguinte a polémica do "Bom-senso e Bom-gosto", título do seu opusculo com António Feliciano de Castilho, o principal mestre literário de então, na qual participam vários escritores, e vence até num duelo Ramalho Ortigão, no jardim da Arca d'Água, no Porto, que se erguera em defesa do patriarca da velha escola romântica Castilho, sendo a de Antero designada como a Escola Coimbrã ou de Coimbra...
Dessa polémica animada de dois anos e em que muitos intervira, relembremos de Antero alguns pensamentos valiosos:

"Bom senso e bom gosto: Isto, resumido em poucas palavras, quer dizer: combatem-se os hereges da escola de Coimbra por causa do negro crime de sua dignidade, do atrevimento de sua rectidão moral, do atentado de sua probidade literária, da impudência e miséria de serem independentes e pensarem por suas cabeças. E combatem-se por faltarem às virtudes de respeito humilde às vaidades omnipotentes, de submissão estúpida, de baixeza e pequenez moral e intelectual."
Movido pelos seus ideais revolucionários anarco-socialistas, e numa linha de autenticidade que sempre o caracterizou, torna-se aprendiz de tipógrafo na Imprensa Nacional, em Lisboa, e parte depois para Paris, para viver a vida dum operário socialista, que contudo não aguenta muito tempo, pelo que regressa, algo desiludido ainda da falta de solidariedade, e após uma segunda estadia, em que se encontrou com Taine e Michelet, inicia em Lisboa uma divulgação dos ideais de Proudhon e do Socialismo, com participação activa nos grupos socialistas e republicanos que se começavam a formar.
Em 1871, pronúncia em Lisboa a célebre conferência sobre "As causas da decadência dos Povos Peninsulares", a qual leva o ministro do Reino, Ávila e Bolama, a proibir o ciclo das conferências, e Antero a dar-lhe uma contundente resposta, em defesa da liberdade, assim iniciada:
"Ex. Sr. Pego a pena, mais pesaroso do que irritado. As misérias morais de qualquer homem contristam-me, porque vejo nelas o abaixamento da alma humana que devia pairar serena e sem mácula. As misérias morais dos homens, que pela posição, pela autoridade, pelos anos, têm missão de dar o exemplo da justiça incorruptível, e ser como apóstolos entre as nações, essas compungem-me dobradamente, porque vejo nelas uma degradação de uma coisa augusta, a lei, e o envilecimento de uma coisa veneranda, os cabelos brancos. Nada disto, porém, exclui a indignação; somente é uma indignação entristecida"...

É nesta fase, que começa em 1871, que Antero se lança numa tarefa que o ultrapassará, designada como o "Programa dos Trabalhos para a Geração Nova” onde pretendia transmitir a visão da Revolução e do Socialismo que estivesse de acordo com a evolução filosófica e científica dos tempos modernos. Essa obra, que ia já em dois volumes, acabará por ser destruída restando apenas os títulos dos capítulos e o que foi publicando nos anos seguintes, ainda que autonomamente mas que facilmente deduzem estarem ligados ou fazerem parte da mesma tarefa de elucubração, difícil pela vastidão mas que se ia, algo inconscientemente, operando dentro de si, com todas as intermitências e dificuldades que os seus padecimentos de saúde lhe iam impondo.
Em 1873 morre o pai, com quem nunca teve grande relação, e é obrigado a partir para Ponta Delgada, onde inesperadamente adoece (ou se sente mais sujeito às astenias), começando um longo calvário de diagnósticos e tratamentos incorrectos (pois tanto poderia ser um estrangulamento do piloro, que lhe dificultava as digestões e o sono, como o seu temperamento algo neurasténico) que o vão diminuindo, e que, aliados a uma certa desilusão política e social, o fazem atravessar uma fase algo pessimista, aguçada em 1876 quando a sua mãe Ana Guilhermina morre e o deixa a sofrer e a chorar durante algum tempo.

Com algum do dinheiro que recebe pode ir então até França e consultar o famoso médico Charcot, do qual dirá em carta: “Consultei o oráculo da filosofia e clínica do sistema nervoso, o grande Charcot, indivíduo, entre parênteses, que possui a cabeça mais inteligente que tenho visto até hoje.” Charcot considera que é o temperamento nervoso com algum tipo de hipersensibilidade ou mesmo histeria, e recomenda-lhe duches de água fria na coluna vertebral e assim irá para as termas de Belevue, nos arredores de Paris, onde tem um romance com uma baronesa francesa, também ela com problemas nervosos. A paixão forte que Antero sentiu foi segundo o seu maior biógrafo Bruno Carreira, o segundo drama da sua vida, referido por João Machado Faria e Maia no In-Memoriam, e que teria levado quase ao suicídio Antero, que parece ter pensado em casar com essa Senhor C., dizendo Oliveira Martins que fora ele que o desarmara do intento de pôr fim à sua existência terrena.
Esta fase é ultrapassada a partir de 1880, altura em que as suas inquietações metafísicas começam a dar os primeiros frutos interiores de uma maior estabilização de compreensão e amor, realizando em si algo do sonhado “Budismo coroando um Helenismo”. É a época mais calma da sua vida que vai começar em Vila do Conde.

Em 1881, instalado então na sua Tebaida, em Vila do Conde, junto ao mar, vai aperfeiçoando os seus notáveis "Sonetos", na forma e no conteúdo, e que testemunham uma nítida evolução espiritual, embora tingidos por um certo niilismo.
Em 1883 publica para educar as suas duas filhas adoptivas Albertina e Beatriz o “Tesouro Poético da Infância” , o qual abre com um poema seu intitulado Fadas, do qual dissera já numa carta a Joaquim de Araújo: “Para mim, poeta de estilo rude e inspiração apocalíptica, foi um verdadeiro tour de force”. A mãe delas e viúva de Germano Meireles morre em 1885, com grande paciência e doçura, dizendo Antero que nunca a esquecerá. E fica sozinho com as duas pequenitas...
Nesse mesmo ano em carta a Jaime Batalha Reis anuncia a próxima saída do seu livro dos “Sonetos”, no qual o estudo que o precede de Oliveira Martins “diz de mais do Autor [ele], que não é sujeito para tanto, e diz de menos quanto à apreciação das minhas ideias filosóficas e religiosas que trata com pouco respeito. Mas, uma vez que assim pensa , assim se há-de imprimir. Você sabe que o Oliveira Martins desdenhou sempre da metafísica. Lastimemo-lo.”
Em 1886 saiem finalmente os Sonetos" que ficará como a sua obra-prima poética e que contudo ele sentia, como os seus amigos mais próximos que não testemunhavam toda a luminosidade a que ele chegara, e que só os últimos vinte e um sonetos davam sinais. Mas ficava como um registo autobiográfico do seu percurso, pensado, sentido e vivido, esperando ainda ele, já que sentia que o veio poético estava a secar, vir a escrever em prosa o que faltava de clarificação espiritual.

Tenta então coordenar as suas ideias, os seus trabalhos para a "Geração nova", a "Religião do Futuro", esse tal livro de Filosofia, que conteria a síntese das suas ideias que conciliariam o naturalismo cientifico e a metafísica, mas a saúde apoquenta-o, embora esta seja uma fase de serenidade e mesmo certa beatitude, e de espiritualidade aprofundada, como afirmará volta e meia nas cartas aos amigos, ao referir por exemplo que “se pode pela aprofundação da natureza humana (e por analogia invencível, de toda a natureza) chegar ao mais completo espiritualismo, a um panpsiquismo que se acomoda perfeitamente, ou antes harmoniza necessariamente, com o materialismo, e ainda o materialismo das ciências naturais... chegar teoricamente até aquela profundidade de compreensão do “homem interior,” como eles diziam, a que os místicos chegaram”.
Após o “Ultimatum” de 11 de Janeiro de 1890, imposto pelo imperialismo inglês quanto à redefinição do mapa de África, na reacção popular desencadeada, aceita o cargo de Presidente da Liga Patriótica do Norte, a convite de Luís de Magalhães e dos estudantes e professores universitários académicos, com eventos de grande emoção e civismo tal como os que envolvem centenas de estudantes ovacionando-o, após a sua chegada de Vila do Conde ao Porto, e no final do seu discurso da varanda da casa de Joaquim de Vasconcelos, na rua de Cedofeita. Todavia a fraqueza do País e dos políticos e partidos (monárquicos e republicanos), destroem o projecto, desiludem-no e abandona de vez a participação pública na marcha dos acontecimentos políticos.
A sua auto-exigência de perfeição tanto moral como formal, tanto na filosofia como na poesia é tão grande que dirá que só apenas alguns do Sonetos é que tinham verdadeiro valor, e escreverá numa carta não datada, mas certamente destes últimos anos:

"Mas os versos que eu quisera fazer, só se farão daqui a duzentos ou trezentos anos, nalgum convento da Ordem dos Mateiros, que alguém mais feliz do que eu conseguirá fundar".
Antero foi um dos raros pensadores que se aproximou lúcido da experiência da morte e das elevadas regiões do Não-Ser, investigando o dito grego «Morrer é ser iniciado», pelo menos no sentido de não recear a morte ou mesmo amá-la, embora não tenha conseguido trazer dos seus reinos da noite, do sonho e do invisível os pomos das revelações da Verdade que tanto demandou, e que moral, poética e filosoficamente bastante realizou...
Pouco antes de morrer, desejara fundar uma ordem de contemplativos, a Ordem dos Mateiros. Fidelino de Figueiredo realçou esse testamento anímico de alguém que «teria sido um S. Bento de Portugal, restaurador da disciplina das almas, iniciador da sua reconstrução pelo recolhimento meditativo». «Três coisas devemos pedir ao recolhimento monástico ou à sua irradiação: firmeza, paciência e esquecimento. Só para as propagar e difundir valeria a pena fundar a velha ordem dos Mateiros, de Antero de Quental — velha, sem nunca ter existido».
O regresso aos Açores, a Ponta Delgada, a 8 de Junho de 1891, chegando um pouco depois as duas crianças e a irmã, certamente mais desiludido e envelhecido, parecia assegurar um novo estado de paz e reequilíbrio, mas a breve trecho tanto ele como a irmã sentem-se incapazes de aguentar o clima opressivo e húmido insular, e Antero acaba por decidir entregar as pequenas ao cuidado de uma família bem escolhida e voltar a Lisboa.

Contudo, a dolorosa dificuldade de digerir e de dormir enfraquece-o de tal modo que o seu regresso a Lisboa é sentido como uma derrota, um acto inútil. Incapaz de reagir, sem grande esperança de futuro, com os nervos em polvorosa, acaba por se sentar num banco, junto à cerca do convento da Esperança, exactamente onde estava afixada uma âncora em metal com a palavra Esperança, e desfechar dois tiros com um revólver na face. Socorrido rapidamente, mas ingloriamente, após uma hora de sofrimento forte mas estoicamente assumido, respondendo ainda a perguntas de médicos amigos com sinais e olhares, parte do Hospital da Santa Casa da Misericórdia para o além pelas 20 horas de 11de Setembro de 1891.
O cavaleiro do Amor e da Morte, da Ideia e da Liberdade partia samuraicamente...
A sua correspondência, trocada ao longo dos anos com vários amigos, de António Azevedo Castelo Branco e Jaime Batalha Reis a Oliveira Martins e tantos outros, é das mais belas e instrutivas da epistolografia portuguesa, e Ana Almeida Martins tem-na tratado, ou estabelecido e publicado, muito bem além de animar os estudos e a casa de Antero em Vila do Conde...
Tente ler tais cartas com calma, e oiçamo-lo um pouco, já: "Cada vez me convenço mais de que - na impossibilidade de penetrarmos absolutamente, totalmente até ao fundo do problema da existência - ainda assim a humildade do coração nos aproxima mais da Verdade que o orgulho da inteligência. Ora, desprezar o mundo, desprezar os homens, ver o vácuo e o tédio como resíduo final de tudo é grande pecado de orgulho"...

Outro seu pensamento valioso a meditar-se: " O espírito humano não é um fragmento truncado e incompreensível ou uma coisa à parte isolada no meio do Universo, mas sim um elemento fundamental dele e a mais alta potência e expressão da sua essência".
Numa das suas mais belas poesias Antero concluirá: «A Ideia, o sumo Bem, o Verbo, a Essência, / Só se revela aos homens e às nações / No céu incorruptível da Consciência».
Entre as inúmeras obras sobre Antero de Quental, destaquemos o seu In-Memoriam e relembremos Leonardo Coimbra, Bruno Carreira, Sant'Anna Dionísio, Joaquim de Carvalho, António Sérgio, Victor de Sá, José V. Pina Martins, Eduíno de Jesus, Joel Serrão, António Quadros, Eduardo Lourenço, José Seabra Pereira, Leonel Ribeiro dos Santos, António Nóvoa, Fernando Catroga, Ana Maria Almeida Martins, etc, etc...
Antero de Quental, cavaleiro da busca da Justiça e da Liberdade, da Razão, da Verdade e do Bem em Portugal...
Antero, um dos nossos grandes pensadores idealistas, hoje tão necessário de ser relembrado face ao pragmatismo materialista que domina ou impregna tantos seres...

Santo Antero, ora por Portugal...
   


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Impresso em 28/3/2024 às 11:06

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